[Coautor: Flávio Amorim da Rocha[1]]
As profissões imperiais – Medicina, Direito e Engenharia – sempre ocuparam lugar de destaque no Brasil, uma majestosa tríade que parece inabalável. As três assim são chamadas em razão de sua origem, que data do Brasil Império, cuja primeira forma de organização foi centrada na vinda da família real ao território nacional em 1808, como assinala Marcos de Oliveira (2004), doutor em Educação pela UFF. A perpetuação desse fato social pode ser abordada como causa e efeito de determinadas problemáticas históricas e sociais, como a negação da importância das demais formações e profissões, o que impacta no processo de ensino e aprendizagem na educação básica e superior e no mercado de trabalho das mais diversas áreas de atuação.
No Brasil, a valorização do estatuto de “Doutor” é uma questão que merece ser repensada. Este ensaio argumenta que a imposição da figura do “Doutor” no país tem raízes históricas que remontam à colonização e à influência europeias, e se perpetua ao longo do tempo, apesar das mudanças sociais. Além disso, discutimos como esse enaltecimento pode ser prejudicial às demais profissões, incluindo as de professores e trabalhadores braçais, que também desempenham papel crucial na sociedade. Por fim, exploramos os impactos sociais da valorização excessiva da representação do termo “Doutor”, como a pressão sobre os jovens para escolher essas carreiras em busca de status social, e as consequências no mercado de trabalho e na formação, onde a demanda por essas profissões pode superar a oferta. Por meio desta análise, esperamos provocar uma reflexão sobre a necessidade de reavaliar o papel social do “Doutor” no Brasil.
Com a recente inflexão na política educacional para o ensino superior no Brasil, surge a pergunta: essa majestade pode perder seu trono? A expansão de vagas no ensino superior é um fenômeno que não pode ser ignorado. No entanto, ao examinar o perfil socioeconômico dos futuros profissionais dessas áreas, em comparação com o de outras carreiras, fica claro que as profissões imperiais ainda mantêm sua posição de destaque, como afirma Hustana Vargas (2010), doutora em Educação pela PUC-Rio. Essas profissões têm uma constituição única e uma situação atual que merecem ser destacadas: a hierarquia de carreiras se expressa tanto no mercado quanto na diferenciação e na hierarquização interna do próprio campo do ensino superior.
Everett Hughes (1958), sociólogo estadunidense, refere-se ao título atribuído a uma pessoa pelo trabalho que desenvolve como “uma combinação de etiqueta de preço e cartão de visita”. Embora possamos associar o prestígio ao poder, salários altos ou ao rigor intelectual do trabalho em si, a soma total do que contribui para a posição cultural de um trabalho é mais complicada. Entretanto, médicos não são apenas admirados por seus salários, tempo que precisam estudar ou a natureza de seu trabalho, o que se evidencia por uma simples comparação com a prática docente, seja ela de base, seja universitária, cujos atributos necessários são equiparáveis, tanto no tempo de formação quanto no esforço necessário ou em relação à “nobreza do trabalho”, e, todavia, não desfruta do mesmo prestígio social, uma vez que pode ser verificada a queda constante de procura a cursos de licenciatura, como tem ocorrido desde 2014 segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP, 2022).
Ainda sob uma ótica voltada à Pedagogia e à Educação, esse enaltecimento das profissões imperiais gera, ao contrário do que se poderia esperar, uma queda na qualidade da formação ofertada para os graduandos. Apenas 10% dos cursos de Direito do Brasil são recomendados pela OAB, segundo Mário Scheffer (2020), assim como em torno de três a cada quatro faculdades de Medicina em território nacional são privadas, segundo Eunice Durham (2018), doutora em Antropologia Social pela USP. Com o aumento da oferta do curso de Medicina por instituições privadas, surge a preocupação com a qualidade desses programas, considerando que, no ranking das dez universidades mais bem avaliadas no país, todas são públicas[2].
Dessa forma, o senso comum atual frequentemente nos leva a um juízo de valor infundado sobre questões basilares à nossa estrutura social, como a hierarquização dos trabalhadores, com parâmetros sustentados em preconceitos estruturais, uma vez que o próprio título de Doutor já fora concedido a todos os bacharéis em Direito, por parte do governo imperial em 1827 (BRASIL, 1825), demonstrando a profundidade do fenômeno aqui criticado.
A compreensão da mentalidade que persiste no senso comum é um fator crucial para entendermos a manutenção das profissões imperiais e a imagem do “Doutor” no Brasil. A influência histórica e cultural da colonização europeia moldou nossa sociedade profundamente, e essa herança continua refletida nas instituições, práticas e juízos de valor diários. Portanto, refletir sobre essa mentalidade é fundamental para uma postura crítica e atual, assim como para a valorização de diferentes profissões, seus impactos e contribuições para os diversos campos das ciências.
[Revisão de Flávio Amorim da Rocha. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
O artigo é o nono texto da sétima edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Efígie, de Paola Dias Bauce, disponível em: https://ermiracultura.com.br/2024/06/01/efigie/.
- “Van Filosofia”: um passeio pelas ruas de Campo Grande, de Herma Aafke Suijekerbuijk, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/08/van-filosofia-um-passeio-pelas-ruas-de-campo-grande/
- Superação e retorno à metafísica, de Cristian Marques, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/15/superacao-e-retorno-a-metafisica/.
- Distopia do capital: o realismo capitalista e a devastação ambiental, de Anthony Franklin Prates Carvalho e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/22/distopia-do-capital-o-realismo-capitalista-e-a-devastacao-ambiental/
- Vínculo e psicanálise, de Caroline S. dos Santos Guedes, Weiny César Freitas Pinto e Natasha Garcia Coelho, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/29/vinculo-e-psicanalise/.
- Máquinas podem pensar como humanos?, de Kauê Barbosa de Oliveira Lopes e Jonathan Postaue Marques, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/06/maquinas-podem-pensar-como-humanos/.
- Qual é o lugar da literatura?, de Maria Clara Barcelos e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/13/qual-e-o-lugar-da-literatura/.
- Ricoeur: leitor e intérprete de Freud, de Pedro H.C. Silva, Gabriel Santana e Paula Mariana Entrudo Rech, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/20/ricoeur-leitor-e-interprete-de-freud/.
Referências
BRASIL, Rio de Janeiro (RJ). Lei de 11 de Agosto de 1827. 1825. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim.-11-08-1827.htm>. Acesso em: 2 jul. 2024.
DA SILVA, A. K. N.; et al. Censo da Educação Superior Inep. [s.l: s.n.]. Disponível em: <https://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/documentos/2021/apresentacao_censo_da_educacao_superior_2021.pdf>. Acesso em: 26 jun. 2024.
DE OLIVEIRA, M. M. As Origens da Educação no Brasil Da hegemonia católica às primeiras tentativas de organização do ensino. Ensaio: avaliação e políticas públicas em educação. p. 945–958, 2004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ensaio/a/Ms7rqgdwYhBLP7q5ZTYjLhb/ Acesso em: 01 de julho de 2024.
DURHAM, E. R. A qualidade do ensino superior. Revista @mbienteeducação, São Paulo, v. 2, n. 1, p. 09–14, 2018. DOI: 10.26843/v2.n1.2009.475.p09 – 14. Disponível em: https://publicacoes.unicid.edu.br/ambienteeducacao/article/view/475. Acesso em: 26 jun. 2024.
EVERETT CHERRINGTON HUGHES. Men and their work. [s.l.] Bloomsbury Academic, 1958. p. 42
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Apenas 10% dos cursos jurídicos no país são recomendados pela OAB. Disponível em: <https://www.oab.org.br/noticia/59572/apenas-10-dos-cursos-juridicos-no-pais-sao-recomendados-pela-oab>. Acesso em: 10 jun. 2024.
SCHEFFER, M. et al. ProvMed 2030 (M. Scheffer, Ed.) Gov. Gov: Governo Federal, 1 nov. 2020. Disponível em: <https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/sgtes/acoes-em-educacao-em-saude/provmed/14-informe-tecnico-provmed-no-2.pdf>. Acesso em: 26 jun. 2024.
VARGAS, H. M. Sem perder a majestade: “profissões imperiais” no Brasil. Estudos de Sociologia, v. 15, n. 28, 6 maio 2010.
[1] Professor de língua portuguesa, literatura e língua inglesa do Campus Campo Grande do Instituto Federal de Mato Grosso do Sul (IFMS) – flavio.rocha@ifms.edu.br.
[2] https://ruf.folha.uol.com.br/2023/ranking-de-cursos/medicina/