Há pouco mais um ano, as artes plásticas de Goiás perderam um de seus artistas mais notáveis. Professor da Universidade Federal de Goiás, ex-diretor da galeria da Faculdade de Artes Visuais, ex-diretor do Centro Cultural da UFG, curador e artista premiado, Carlos Sena morreu no dia 16 de maio de 2015, deixando uma imensa lacuna no meio artístico.
A última exposição organizada por Sena, que não teve tempo de inaugurar, está em cartaz no Centro Cultural UFG, na Praça Universitária, podendo ser visitada até dezembro. O artista plástico Divino Sobral, seu companheiro por 25 anos, e com quem dividia o ateliê, as preocupações, alegrias e tristezas, concluiu a coletiva Diálogos Possíveis 3. Sena selecionara no vasto acervo da FAV, iniciado por ele nos anos 1980, obras de talentos de Goiânia, Brasília, São Paulo, João Pessoa e Belém. Sobral inseriu duas belas obras de Sena: a colagem Infinitus, feita de pequenos anúncios recortados, e a instalação São Pedro Atendei Nossas Preces.
Há mais de 20 anos, Sena não pintava com tinta a óleo por causa de problemas respiratórios graves. Dedicava-se à pesquisa com novos materiais e outras linguagens, utilizando o computador, uma ferramenta de trabalho que considerava fabulosa. Deixou dezenas de trabalhos inéditos e um livro sobre a história da arte em Goiás, que Divino Sobral pretende editar, e muitos admiradores consternados.
Carlos Sena chegou a Goiânia com a família em 1973. Nascido em Mairi (BA), morou em Nanuque (MG) até mudar-se para a capital. Tinha alma goiana. Seu gênio criativo despontou cedo. Apesar da simplicidade e da afabilidade interioranas, Sena estava atento aos movimentos artísticos, às experimentações, às pesquisas. Artista de múltiplos talentos, passava horas à frente do computador criando, pesquisando, transitando entre o desenho, a colagem, a fotografia, a publicidade e as instalações.
Todo início de carreira costuma ser difícil. Para ele, não foi diferente. Estudou em escola pública, formou-se no antigo Instituto de Artes da UFG, que originou a FAV, onde chegou a professor titular, aproveitou imensamente a juventude, curtiu o desbunde dos anos 1960/1970. Despontou no circuito de exposições nos anos 1980. Só encerrou a criação ao sucumbir a um enfisema pulmonar. Leia a seguir a entrevista que Divino Sobral concedeu a ERMIRA, na qual fala do legado de Sena.
Carlos Sena deixou um imenso legado. O que você destacaria?
O legado do Carlos se dá em vários campos. Primeiro no campo da arte. Ele iniciou a carreira no final dos anos 1970. Nos anos 1980, ingressou na universidade como professor, e começa a ganhar os primeiros prêmios com pinturas executadas em óleo sobre tela, que o tornaram bastante conhecido, famoso, principalmente em Goiânia. Seu trabalho era de natureza figurativa. O tema central eram representações de mulheres melancólicas, tristes, deprimidas, com uma pitada de sexualidade. Mas uma sexualidade triste. A feitura era muito delicada, com várias camadas muito transparentes de tinta, como se fosse uma veladura renascentista, embora o trabalho dele nada tenha de natureza renascentista. Os personagens são advindos muitas vezes da observação dele e do mundo real. Uma série bastante conhecida é a das prostitutas do interior de Minas, mais precisamente da cidade de Nanuque, onde ele viveu. Depois, pintou referências recolhidas da cultura de massa.
Ele abandonou a pintura para se dedicar a outras linguagens. Por quê?
No final dos anos 1980, começou a deixar a pintura e passou a desenvolver uma pesquisa em arte, que representa um corte total em relação à sua produção anterior, a pintura tradicional dentro do contexto da arte contemporânea. Essa pesquisa oferece a possibilidade de criar objetos, instalações e outras formas de comportamento plástico, utilizando materiais que ia recolhendo: pequenas tampas, embalagens, cartazes, sacolas de plástico, vidros, tudo que transitava pelo universo de consumo. Passou basicamente dez anos pesquisando esses objetos, fazendo instalações com diversos tipos de materiais. Ele dizia: “Faço esses trabalhos com lixo”. Mas, na verdade, não era lixo. Lixo seria se fosse material de descarte, mas todos os materiais eram comprados. Muitas vezes eram produtos que a gente não consumia. Jogava-se fora o conteúdo para ficar com a embalagem. O objetivo era dar um tratamento diferente àquele material antes de ele virar lixo. Como tinha uma saúde muito frágil, fazer isso aparentemente era simples, mas não era, pois demandava muita pesquisa. [Veja a seguir vídeo no qual Divino Sobral fala dos trabalhos de Sena realizados com instrumentos digitais]
Nos últimos anos Carlos dedicou a maior parte do seu tempo à direção do Centro Cultural UFG e à arte digital. O que pretendia fazer com o material?
A partir de 2005, Carlos dedicou seu tempo à produção digital, à criação de imagens. Ele adorava computador. Nos seus dois últimos dias de vida, na cama, ele usou o computador, respondeu e-mails, entrou no Facebook. Achava fabuloso o computador. Pintava digitalmente. Pegava uma fotografia e trabalhava em cima dela.
Carlos rompeu com a pintura definitivamente. Por que nunca mais pintou?
Ele enjoou do mercado de artes. Os anos 1980, quando estava no auge, foi muito rico para as artes plásticas. Mas muito predador. Carlos vendeu todas suas pinturas. Sempre viveu de arte. Só que entendia que o que havia era uma exploração do artista. Quem comercializava pegava sua comissão e pronto. Não se falava mais do artista, tampouco de sua obra. Havia um processo de diminuição do artista. “Faça algo mais palatável, mais vendável, consumível, que vamos vender mais”. Essa inquietação estava fazendo muito mal a ele, por isso resolveu dar um stop. [Divino Sobral dá mais detalhes no vídeo a seguir sobre as razões que levaram Carlos Sena a abandonar a pintura]
O que pretende fazer com esse material?
Tenho a primeira pintura que fez dessa série no computador e também a última. Outras doei para o Centro Cultural UFG, Museu de Arte Contemporânea de Goiás, Museu de Anápolis, e em breve uma irá para o Museu Nacional da República, em Brasília. Fiz as doações para evitar problemas para nossas famílias no futuro. Acredito que essas obras pertencem à comunidade, a partir das instituições. Onde puder colocar um trabalho do Carlos, principalmente aqueles de natureza mais complicada, eu doarei. É meu projeto colocar no meu testamento que todo conjunto de obras dele sejam doadas para o acervo do Centro Cultural UFG.
Como era o Carlos Sena professor de artes?
Quando o conheci, estava rompendo com o circuito das artes. Entrou na UFG a convite do então reitor Ricardo Bufaiçal para substituir Cleber Gouvêa, que estava com problemas de saúde. A primeira exposição realizada na FAV foi organizada por ele. Jovens artistas como eu, Marcelo Solá, Juliano de Morais, e outros participaram dessa coletiva, que reunia alunos, professores, artistas independentes. Periodicamente fazia esse encontro de artistas. Assim surgiu a FAV/ UFG. O antigo prédio da marcenaria foi remodelado dando lugar à galeria, inaugurada em 2002, quando a professora Milca Severino era reitora. Ele entendeu que a galeria era o ponto de partida para a criação de um acervo e passou a investir numa reserva técnica. Começou então a juntar obras numa salinha pequena, que acabou se estendendo. Angariou tantas obras, formando uma das maiores e melhores coleções de arte contemporânea do Centro-Oeste. Na universidade, criou as disciplinas História da Arte no Brasil e Arte Contemporânea, que absorveu para si. Carlos trilhou caminhos muito tortuosos para conseguir estruturar o seu trabalho. Nunca desistiu da luta.
Uma de suas grandes realizações foi o Centro Cultural UFG, hoje uma das referências da cultura do Estado.
Quando foi convidado pelo reitor Edward Madureira para dirigir a Oficina Cultural, na Praça Universitária, ele disse que só aceitaria o convite se pudesse transformá-lo em local de referência. Recebeu sinal verde do reitor. Sua ousadia foi motivo de ironia, pois o Galpão era antigo, sujo, largado. Foi chamado de Quixote delirante, lutando contra o moinho de vento. Aos poucos, tudo foi sendo organizado, e hoje é um centro de grande importância para a UFG e também para o Estado. [Divino Sobral fala no vídeo a seguir do trabalho de Sena na Galeria da FAV]
Sena também teve um papel relevante na discussão da arte contemporânea. Ele tinha noção dessa importância?
Quando decidiu romper com a pintura, ainda não se falava, não se debatia a importância da arte como produto de mercado e menos ainda como produto de cultura. Não se discutia o que aquela obra representava. Não havia curadores nos anos 1990. Carlos foi o primeiro artista a sair do ateliê e entrar no campo de batalha, no campo da pesquisa junto às instituições para que houvesse espaço para a curadoria, para a discussão. Digo com convicção que talvez ele seja o pioneiro nesse processo de curadoria em Goiás. Ele chegou a escrever um livro, que pretendo editar, sobre a arte contemporânea em Goiás, mas esquivou-se de publicar. [No vídeo a seguir, Divino Sobral faz mais comentários a respeito do pioneirismo de Carlos Sena na curadoria de arte em Goiás]
Carlos Sena deixou herdeiros?
Não digo isso. Existe um grande medo de as pessoas assumirem o lugar dele, mesmo depois de mais de um ano de sua morte. Tem gente que diz assim: “Não consigo fazer o que o Carlos fez”. Não precisa. Ele próprio não estava preparado para os desafios que ele mesmo criava. Se jogava de cabeça. Ele influenciou muita gente.
Como era sua convivência com ele?
Há pessoas que me acusam de tê-lo feito parar de pintar. Os problemas de saúde não o deixaram continuar. Fomos casados durante 25 anos. Claro que ele me influenciou em vários sentidos, ou vice-versa. Dividimos o mesmo ateliê.
Que falta o Sena faz no cenário artístico?
Carlos era um ponto agregador, de união. Conseguia juntar forças, as mais diferentes possíveis. Há gerações, interesses, estéticas, linguagens bastante diversificadas. Mas ele conseguia transitar em todos os meios e unir pontos de vista totalmente diferentes. Nessa exposição Diálogos Possíveis 3, por exemplo, há fotógrafos que não transitam pelo meio artístico, como o Weimer Carvalho, o Paulo Rezende, a Rosa Berardo, que têm tamanha potência e qualidade que podem estar em qualquer museu. Essa é a falta dele: a de poder articular uma coisa isolada da sociedade como a universidade, que é quase um gueto ensimesmado, e a comunidade. Foi a partir dele que a FAV se abriu para os artistas. [Divino Sobral fala no vídeo sobre a influência de Carlos Sena na sua obra]
E para você, que falta ele faz?
Faz uma falta emocional muito grande. Um amor de 25 anos não se acaba. Cada projeto, cada exposição que a gente fazia era discutido. Infelizmente não tenho mais ele para celebrar, por exemplo, essa exposição, contar como foi a receptividade. Ficou um vazio enorme, seu bom humor, a ironia, a paixão.