[Coautor: Vítor Hugo dos Reis Costa[1]]
Schopenhauer, ao referir-se aos sonhos, ressalta que são a “experiência onírica da vida consciente” (SCHOPENHAUER, 2023, p. 55) e têm como característica principal uma certa fatalidade inerente ao sujeito. Existe um poder secreto que coordena os eventos dos sonhos, que, no entanto, parte de nós mesmos: trata-se da nossa própria vontade. Segundo Schopenhauer, ela é a real condutora dos eventos nos sonhos, mas de um modo tal que “não entra em nossa consciência onírica” (SCHOPENHAUER, 2023, p. 56). O sonho nos conduz a estados contrários a nossos desejos, sentimos medo e aborrecimento. Esses sentimentos catastróficos aparecem no sonho como um destino inexorável, algo externo que nos assola, sendo que, em realidade, o responsável por criar uma maré de azar onírica provém de nós mesmos. Esse tipo de sonho, podemos chamar provisoriamente de sonho dramático. Schopenhauer não utiliza essa denominação, mas a utilizaremos de modo didático.
Nos sonhos dramáticos, parece haver um teatro, no qual o sonhador é afetado pelas personagens sem nada poder fazer. Há duas características fundamentais dos sonhos dramáticos: i. Muitas vezes, cenas e temas de frustrações amorosas, perseguições implacáveis ou situações cômicas se repetem, havendo as mesmas recorrências oníricas ao longo da vida; ii. No sono, existe um destino implacável e aparentemente exterior coordenando os acontecimentos sem que o sujeito consciente dos sonhos perceba; contudo, em realidade, é aquilo que é mais íntimo e essencial no próprio sujeito, isto é, sua vontade, que coordena as fatalidades e dramas oníricos.
Sem que possa se dar conta, o sujeito é um grande romancista, pois tem a capacidade de criar em sonhos a mais complexa rede de acontecimentos, recheadas de dramas e aventuras. Todavia, o sonhador não tem controle sobre os eventos oníricos, ainda que tudo parta dele mesmo. O roteiro dos sonhos é elaborado em um ponto que escapa à consciência do sujeito. O sujeito experimenta sua própria criação como um conjunto de sensações, pessoas e acontecimentos absolutamente reais, vívidos e exteriores, como eventos da vida ordinária. Somos – ou talvez sejamos habitados por uma instância que é – o secreto diretor de nossos sonhos, ainda que eles estejam além de nossa consciência e de nosso conhecimento.
Além dos sonhos dramáticos, existe outro tipo de sonho, os sonhos naturais, já que se trata de experiências oníricas em correspondência ao funcionamento dos órgãos. Ambos, os sonhos dramáticos e naturais, apresentam diferenças e semelhanças que precisam ser expostas para aprofundarmos nossa reflexão sobre a teoria dos sonhos de Schopenhauer.
Convidamos o leitor a refletir um pouco sobre o que seriam os sonhos naturais e qual seu mecanismo de funcionamento. Schopenhauer afirma que em determinados momentos a vesícula seminal está cheia e sonhos com cenas sedutoras ocorrem, para que, então, suceda o esvaziamento e a estabilidade do sistema natural do corpo. É esse tipo de sonho que pode ser classificado provisoriamente como sonho natural. Segundo um esquema interpretativo oferecido pelo filósofo e historiador da filosofia Herbert Schnadelbach (1991), em seu Filosofia em Alemania, Schopenhauer estaria não só abrindo uma senda que se convencionou chamar de irracionalista, ao conceber que o âmbito volitivo e pulsional precede e fundamenta nossa dimensão cognitiva e racional, como também pavimentou o terreno de uma possibilidade naturalista para o filosofar, isto é, uma possibilidade de reconhecimento da legitimidade dos saberes produzidos nas ciências naturais.
Para Schopenhauer, ainda que o sujeito do sonho tenha pouco juízo ou falta de memória, existe nele uma força ativa no cérebro. Portanto, segundo Schopenhauer, ainda que não saibamos explicar o mistério dos acontecimentos dos sonhos no interior do cérebro, é inegável que ele tem um papel fundamental nesse processo. Schopenhauer comenta que fisiologicamente os sonhos do cérebro e o esvaziamento das vesículas seminais nos sonhos de sedução podem ser comparados à emanação de uma matéria elétrica sem que exista choque, como, por exemplo, os relâmpagos no interior das nuvens em oposição ao raio que toca o solo. Já o processo de formação das imagens do sonho, segundo o filósofo, ocorre do seguinte modo: a ponta externa dos nervos do cérebro (olhos, ouvido etc.) está em repouso, mas ainda assim existem imagens, pois o sujeito experimenta estímulos que provêm do interior do organismo. Eles advêm da ponta interna dos nervos, cujo centro não é o cérebro, mas os gânglios.
Schopenhauer argumenta que os gânglios ou nódulos nervosos funcionam como governantes de uma distante província do sistema nervoso central. Eles fariam parte do sistema secundário do organismo, responsável por processos inconscientes, tais como: sonhos, movimentos do coração, secreções etc. Já o sistema primário é governado pelo cérebro, sede da consciência, e age por meio do sistema nervoso central, com atividades correspondentes a fala, movimento dos olhos, pernas, braços etc. O sistema ganglionar seria o modo pelo qual a vontade exerce sua preservação da vida orgânica, conservando e curando o organismo, seja acordado, seja em sonho (por isso durante a manhã sempre acordamos revigorados).
O sistema ganglionar atua como pontes que armazenam e enviam informações (sobre tecidos e órgãos do corpo humano) ao sistema nervoso central. Somente um pequeno eco do sistema nervoso ganglionar é sentido durante o estado de vigília, porém, ao adormecer, as impressões externas se silenciam e as impressões fracas do sistema ganglionar começam a surgir. Segundo Schopenhauer, a matéria diurna captada pelos gânglios torna-se sonho na atividade cerebral, portanto, em realidade, a verdadeira sede dos sonhos está nos gânglios e não no cérebro. No sono, a atividade sensorial do cérebro interpreta os sinais internos como externos, e processa a imagem do sonho durante o lento processo de adormecimento. Os sonhos são influenciados pelas impressões internas. Justamente no plexo abdominal, ou seja, na rede de neurônios ganglionar do abdômen, está localizado um tipo de sistema nervoso mais simples. É ali que ocorre uma maior atividade de reação a estímulos externos, uma maior atividade da vontade, que, por sua vez, atua produzindo imagens no cérebro do sonhador.
Neste sentido, podemos compreender que a estrutura dos sonhos em Schopenhauer apresenta consequências epistemológicas interessantes. Ainda que a explicação fisiológica sobre os processos internos seja inata, os sonhos são explicados com um discurso misto que integra elementos das ciências da natureza com questões de ordem metafísica. Neste sentido, busca-se dar uma explicação que abarca as variadas dimensões da experiência onírica. Sendo assim, parece que a epistemologia contida na teoria do sonho de Schopenhauer pode contribuir, em alguma medida, para o problema contemporâneo do método na filosofia: trata-se de se pensar um tipo de método que possa integrar os resultados da filosofia e das ciências da natureza, a respeito do mecanismo de funcionamento dos sonhos.
[Revisão de Ana Tércia e Gabriel Santana. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
SCHNADELBACH, Herbert. Filosofía em Alemania, 1831 – 1933. Traducción: Pepa Linares. Madrid: Ediciones Catedra, S. A., 1991.
SCHOPENHAUER, Arthur. Para uma metafísica do sonho. Seleção, tradução e introdução: Márcio Suzuki. 1ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2023.
SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a vontade na natureza. Tradução, prefácio e notas: Gabriel Valladão Silva. 1ª ed. Porto Alegre: L&PM, 2018.
[1] Realiza pós-doutorado na UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutor, mestre e graduado em Filosofia pela UFSM – Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: costavhr@gmail.com
O artigo de hoje é o 16º texto da sétima edição do Projeto Ensaios, chegamos ao centésimo texto publicado do projeto, desde o seu início. O Projeto Ensaios é um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Efígie, de Paola Dias Bauce, disponível em: https://ermiracultura.com.br/2024/06/01/efigie/.
- “Van Filosofia”: um passeio pelas ruas de Campo Grande, de Herma Aafke Suijekerbuijk, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/08/van-filosofia-um-passeio-pelas-ruas-de-campo-grande/
- Superação e retorno à metafísica, de Cristian Marques, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/15/superacao-e-retorno-a-metafisica/.
- Distopia do capital: o realismo capitalista e a devastação ambiental, de Anthony Franklin Prates Carvalho e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/22/distopia-do-capital-o-realismo-capitalista-e-a-devastacao-ambiental/
- Vínculo e psicanálise, de Caroline S. dos Santos Guedes, Weiny César Freitas Pinto e Natasha Garcia Coelho, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/29/vinculo-e-psicanalise/.
- Máquinas podem pensar como humanos?, de Kauê Barbosa de Oliveira Lopes e Jonathan Postaue Marques, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/06/maquinas-podem-pensar-como-humanos/.
- Qual é o lugar da literatura?, de Maria Clara Barcelos e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/13/qual-e-o-lugar-da-literatura/.
- Ricoeur: leitor e intérprete de Freud, de Pedro H.C. Silva, Gabriel Santana e Paula Mariana Entrudo Rech, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/20/ricoeur-leitor-e-interprete-de-freud/.
- As profissões imperiais no Brasil: uma majestade inabalável, de Guilherme Giovane Ribeiro de Moraes e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/27/as-profissoes-imperiais-no-brasil-uma-majestade-inabalavel/.
- Freud convida Schopenhauer e Nietzsche, de Iolene Aparecida Seibel e Natasha Garcia Coelho, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/03/freud-convida-schopenhauer-e-nietzsche/.
- Psicogênese e educação infantil, de Giovana Santos, Lucas Aguiar e Amanda Malerba, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/10/psicogenese-e-educacao-infantil/.
- O devir do escritor filósofo, de João Pedro da Silva e Vitor Hugo dos Reis Costa, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/17/o-devir-do-escritor-filosofo/.
- Quem pode ser considerado “o pai” de uma teoria científica?, de Davi Barbosa Ferreira e Weiny César Freitas Pinto, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/24/quem-pode-ser-considerado-o-pai-de-uma-teoria-cientifica/.
- Nietzsche e a naturalização do conhecimento, de Francisco de Paula Santa de Jesus, Raphael Vicente de Souza e Pedro H. C. Silva, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/31/nietzsche-e-a-naturalizacao-do-conhecimento/.
- Estaríamos dependentes daquilo que nos adoece?, de Natália Nazário e Alberto Mesaque Martins, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/09/07/estariamos-dependentes-daquilo-que-nos-adoece/.