[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
Biodiversidade
Há maneiras mais fáceis de se expor ao ridículo,
que não requerem prática, oficina, suor.
Maneiras mais simpáticas de pagar mico
e dizer olha eu aqui, sou único, me amem por favor.
Porém há quem se preste a esse papel esdrúxulo,
como há quem não se vexe de ler e decifrar
essas palavras bestas estrebuchando inúteis,
cágados com as quatro patas viradas pro ar.
Então essa fala esquisita, aparentemente anárquica,
de repente é mais que isso, é uma voz, talvez,
do outro lado da linha formigando de estática,
dizendo algo mais que testando, testando, um dois três,
câmbio? Quem sabe esses cascos invertidos,
incapazes de reassumir a posição natural,
não são na verdade uma outra forma de vida,
tipo um ramo alternativo do reino animal?
Macau (2003)
***
[2]
Três epifanias triviais
II
As coisas que te cercam, até onde
alcança a tua vista, tão passivas
em sua opacidade, que te impedem
de enxergar o (inexistente) horizonte,
que justamente por não serem vivas
se prestam para tudo, e nunca pedem
nem mesmo uma migalha de atenção,
essas coisas que você usa e esquece
assim que larga na primeira mesa –
pois bem: elas vão ficar. Você, não.
Tudo que pensa passa. Permanece
a alvenaria do mundo, o que pesa.
O mais é enchimento, e se consome.
As tais Formas eternas, as Ideias,
e a mente que as inventa, acabam em pó,
e delas ficam, quando muito, os nomes.
Muita louça ainda resta de Pompeia,
mas lábios que a tocaram, nem um só.
As testemunhas cegas da existência,
sempre a te olhar sem que você se importe,
vão assistir sem compaixão nem ânsia,
com a mais absoluta indiferença,
quando chegar a hora, a tua morte.
(Não que isso tenha a mínima importância.)
Macau (2003)
***
[3]
Pomo
Da vida só tem substância
a casca e o caroço.
No meio só tem amido,
embromações do carbono.
Porém todo o gosto reside
nessa carne intermediária,
sem valor alimentício,
sem realidade, sem nada.
É nela que os dentes encontram
o que os mantém afiados;
com ela é que a língua elabora
a doce palavra.
Mínima lírica (2013, 2. ed.)
***
[4]
À margem do Douro
Não espero nada, e já me satisfaço
com a consciência de ainda estar em mim
e não de volta ao nada de onde vim.
Por ora, ao menos, ainda ocupo espaço,
junto a uma mesa no Cais da Ribeira;
permito-me, sem culpa, desfrutar
de pão, e queijo, e vinho, e vista, e ar,
todo o entorno da minha cadeira.
Que os dias que me restam não me tragam
apenas a miséria de contá-los
pra ao fim ver que as contas não fecham. Peço
demais? Eu, que não sou desses que tragam
a vida num só gole e no gargalo,
sem ter nem mesmo perguntado o preço.
Nenhum mistério (2018)
***
[5]
Malgré soi
É estritamente pessoal
o que isto queira dizer,
por mais lógico e formal
o impulso que impele você
a encher de riscos o vazio
incômodo a sua frente.
O gesto pretende-se frio;
no entanto, seu rastro é ardente.
Perversidade sem trégua
de criado contra criador?
Ou então o vício da régua
condena a mão ao rigor,
porém seu poder vale nada
(ou é só sintonia fina]
junto à instância mais elevada
à qual a mão se subordina?
Fim de verão (2022)
Paulo Henriques Britto nasceu no Rio de Janeiro em 1951. É professor, tradutor, contista e poeta. Publicou os seguintes livros de poemas: Liturgia da matéria (1982), Mínima lírica (1989), Trovar claro (1987, Prêmio Alphonsus de Guimaraens), Macau (2003, Prêmio Portugal Telecom), Eu quero é botar meu bloco na rua (2009), Formas do nada (2012), Nenhum mistério (2018) e Fim de verão (2022). Sobre a prática da tradução, publicou em 2012 A tradução literária. Escreveu ainda o livro de contos O castiçal florentino, publicado em 2021.