[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
Um retrato
Eu mal o conheci
quando era vivo.
Mas o que sabe
um homem de outro homem?
Houve sempre entre nós certa distância,
um pouco maior que a desta mesa onde escrevo
até esse retrato na parede
de onde ele me olha o tempo todo. Para quê?
Não são muitas as lembranças
que dele guardo: a aspereza
da barba no seu rosto quando eu o beijava
ao chegar para as férias;
o cheiro de tabaco em suas roupas;
o perfil mais duro do queixo
quando estava preocupado;
o riso reprimido
até soltar-se (alívio!)
na risada.
Falava pouco comigo.
Estava sempre
noutra parte: ou trabalhando
ou lendo ou conversando
com alguém ou então saindo
(tantas vezes!) de viagem.
Só quando adoeceu e o fui buscar
em casa alheia
e o trouxe para a minha casa (que infinitos
os cuidados de Dora com ele!)
estivemos juntos por mais tempo.
Mesmo então dele eu só conheci
a luta pertinaz
contra a dor, o desconforto,
a inutilidade forçada, os negaceios
da morte já bem próxima.
Até o dia em que tive de ajudar
a descer-lhe o caixão à sepultura.
Aí então eu o soube mais que ausência.
Senti com minhas próprias mãos o peso
do seu corpo, que era o peso
imenso do mundo.
Então o conheci. E conheci-me.
Ergo os olhos para ele na parede.
Sei agora, pai,
o que é estar vivo.
Prosas seguidas de odes mínimas (1992)
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[2]
À televisão
Teu boletim meteorológico
me diz aqui e agora
se chove ou se faz sol.
Para que ir lá fora?
A comida suculenta
que pões à minha frente
como-a toda com os olhos.
Aposentei os dentes.
Nos dramalhões que encenas
há tamanho poder
de vida que eu próprio
nem me canso em viver.
Guerra, sexo, esporte
– me dás tudo, tudo.
Vou pregar minha porta:
já não preciso do mundo.
Prosas seguidas de odes mínimas (1992)
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[3]
Momento
Visto assim do alto
no cair da tarde
o automóvel imóvel
sob os galhos da árvore
parece estar rumo
a algum outro lugar
onde abolida a própria
ideia de viagem
as coisas pudessem
livremente se entregar
ao gosto inato
da dissolução – e é noite.
Socráticas (2001)
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[4]
Glauco
Nas duas vezes que voltei a Curitiba
não o encontrei.
Numa tinha viajado para o Rio
na outra tinha viajado para a morte.
E nem havia mais onde encontrá-lo:
o Belas Artes fechara
a redação de O Dia sumira-se no ar
as pensões eram terrenos baldios.
Desarvorado me sentei à mesa
de uma confeitaria na esperança – vã –
de que algum sobrevivente de outros tempos
viesse dar notícias dele.
Só a caminho do aeroporto tive
um relance dos seus óculos kavafianos
mas sem os olhos risonhos
por detrás das lentes:
livres embora da miopia do corpo
seus olhos continuavam no encalço
da eterna
fugaz
inatingível
Beleza Adolescente.
Socráticas (2001)
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[5]
Still life
Paisagem de fundo
geometricamente ordenada
pelas barras da porta.
As folhas novas
do arbusto,
a coluna impositiva
do relógio de sol,
a touceira (via láctea
doméstica) dos copos-de-leite.
E, encostadas ao muro,
as folhas do antúrio
feito máscaras de deuses
implacáveis,
felizmente ainda
(ganhaste mais um dia!)
benignos.
Socráticas (2001)
José Paulo Paes nasceu em 22 de julho de 1926 na cidade de Taquaritinga (SP) e morreu no dia 9 de outubro de 1998 na capital paulista. Em 1944, mudou-se para Curitiba, onde graduou-se em química industrial, sem deixar de dedicar-se à literatura, escrevendo para a revista Joaquim, dirigida por Dalton Trevisan. Em 1949, retorna a São Paulo e passa a colaborar com os suplementos literários da Folha de S. Paulo e do O Estado de S. Paulo. Convive com Graciliano Ramos, Jorge Amado, Oswald de Andrade e Alfredo Bosi. Na década de 1960, abandona as suas atividades de químico para se ocupar exclusivamente de literatura, assumindo também compromissos editoriais com a Cultrix. Nessa editora, com Massaud Moisés, organiza o Pequeno dicionário de literatura brasileira, publicado em 1967. Autodidata em várias línguas, dá início com grande produtividade à atividade de tradução, tendo vertido para o português autores como Charles Dickens, Joseph Conrad, Konstantinos Kaváfis, W. H. Auden, Rilke, Lewis Carrol, Paul Éluard, Lawrence Sterne e muitos outros. Pelo seu relevante trabalho na área, foi nomeado diretor da oficina de tradução de poesia no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Publicou, entre outros, os seguintes livros: O aluno (1947), Cúmplices (1951), Novas cartas chilenas (1954), Resíduo (1973), É isso ali (1984), A poesia está morta mas juro que não fui eu (1988), Prosas seguidas de odes mínimas (1992). Postumamente, foram lançados Ri melhor quem ri primeiro (1999), O lugar do outro (1999) e Socráticas (2001). Pavão, parlenda, paraíso (1977) reúne os seus ensaios. Na apresentação ao livro Socráticas, Alfredo Bosi considera que “Desta cidade poenta e ruidosa José Paulo Paes quis e soube ser uma espécie de Sócrates em tom menor: a consciência vigilante que interroga e incomoda, ao encalço de uma verdade tão ácida e aguda que não poupa nada nem ninguém, nem mesmo o próprio eu que a busca como um Pascal sem esperança, en gémissant.”