Não se sabia ao certo em qual hora o cachorro fora atropelado. O animal, contudo, jazia desde cedo próximo ao meio-fio, as patinhas estendidas, à espera de um enterro decente. Duas pessoas, que não tinham o que fazer, olhavam o animal, abaixando de vez em quando a cabeça e dizendo lugares-comuns, como:
“O cachorro é o melhor amigo do homem” e “Os cães também merecem respeito.”
Se o animal conseguisse levantar-se de sua rigidez, sacudir o corpo, antes de disparar pela calçada, a pelagem cinza refletindo brilho e maciez, todos poderiam exclamar ao mesmo tempo:
“Oh, mas que belo animal! Como ele sabe correr!”
Mas ele jamais levantar-se-ia daquele lugar, em hipótese alguma, porque estava morto – tão morto quanto os mamutes do Pleistoceno.
Quando Gonçalves, o trambiqueiro do bairro, encostou o carro sob a sombra de uma acácia, o motor rangendo, ele bateu a mão na testa e reconheceu, desesperado:
“Ai, meu Deus, que cagada!”
Ele tinha acabado de cometer o maior erro de sua vida.
O cachorro que atropelara de propósito tinha um dono – o melhor que um animal pode ter nesta vida, não só por causa dos banhos, das escovadas, das vacinas e carícias. Até onde é possível dizer, ele amava realmente o seu cachorro, com a convicção cega dos fundamentalistas.
No bairro, todo mundo sabia que Dog, o cão que gostava de andar pela 4ª Avenida, mas que podia também ser visto perambulando, serelepe, por outras ruas e praças, era adorado pelo famoso Zé Limão, um malfeitor com jeito de galã, três mortes no currículo, um número incerto de detenções e humor de pólvora.
Zé Limão não era só azedo, como o seu apelido sugeria – ele era também ex-presidiário e tinha tatuagens espalhadas pelo corpo, a da águia nos bíceps e a da aranha nos ombros. Como todo valentão, não se cansava de dizer:
“Minha fama, senhores, me precede!” – jactava-se, zombeteiro, na sua exibição triunfalista.
No bar, todos abriam passagem, porque Zé Limão estava solto, mas não regenerado. Porque, afinal, ele era forte, arrogante e dava porradas sem perguntar onde a dor seria mais amena. Esse cara, se você quiser saber, tinha enfrentado todas as paradas, as de aço e as de chumbo, e se saído muito bem em cada uma delas. Diziam que tinha o corpo fechado. Quando sentiu falta do cachorro, perguntou no açougue costumeiro:
“Você viu o Dog?”
O açougueiro respondeu que o cachorro estava morto, estendido ali mesmo, desde cedo – e apontou a direção:
“É só dobrar a esquina, que você vê ele lá, atropelado.”
“Quem matou ele?”
“Foi o Gonçalves, o do fusquinha.”
“O Gonçalves, aquele bundão?”
“Sim, ele mesmo.”
A essa altura, Gonçalves já tinha tratado de esconder-se, contando com dias melhores, que não lhe causassem mais aflição do que as noites de insônia.
Zé Limão, porém, não foi atrás dele. Isso ficaria para mais tarde.
Enquanto cavava, as lágrimas escorrendo, olhou para o cachorro enrolado numa toalha, uma ponta do rabo aparecendo, e sabia que a cena iria assombrá-lo por muito tempo. Pela primeira vez, Zé Limão pensou em sua vida – e sentiu-se o mais inútil e amaldiçoado de todos os homens.
*
Na manhã em que Zé Limão abordou-me e fez-me a pergunta, fiquei tão pasmo que não soube responder de imediato. Não era todo dia que ele cumprimentava um menino – e pedia-lhe um favor:
“Você pode vigiar meu cachorro?”
Em seguida, entregou-me uma correia gasta, ao fim da qual havia um animal vistoso, saudável, de pelagem cinza e aveludada, exibindo uma expressão alegre e amistosa – a melhor que um cachorro neste mundo pode exibir.
Eu já tinha visto cães espetaculares, mas aquele tocou de algum modo o meu coração. Era um cachorro que todo menino gostaria de ter ao seu lado quando fosse caçar codornas ou pescar. Surpreso pela escolha, eu lhe perguntei:
“Por quanto tempo?”
Ele me respondeu, abrindo os braços:
“Oh, quem sabe, sei lá, algumas horas!” – e riu como os malfeitores riem, com um esgar que misturava zombaria e autoconfiança.
“Qual é o nome do cachorro, se eu precisar chamar ele?”
“Dog. Chame esta gracinha de Dog – e ele saberá o que fazer.”
*
Foi assim que conheci Dog, o mais legal cachorro da minha infância, o mais incrível de todos os cães de rua, que nunca foi capturado pela carrocinha, apesar de todas as tentativas. Pelo seu caráter, Dog jamais seria um mascote de banda marcial nem modelo de anúncio de pet shop.
Eu estava na praça Boaventura, um grande centro comercial da Vila Nova, sentado num banco, quase em frente à paróquia. Os ônibus e os carros atravessavam as duas vias que a dividiam. O cachorro deitou-se aos meus pés, enquanto observava o seu dono afastar-se em direção a uma rua lateral da igreja. Eu olhei para o cachorro e murmurei:
“Pobre Dog!, o seu dono é um pilantra!”
Deitado aos meus pés, com a cabeça estendida sobre o piso sujo, os olhos fechados, Dog respirava mansamente, com toda a confiança, como se a bondade estivesse circulando em cada rua do bairro, e o garotinho sentado na praça fosse o seu melhor amigo.
Fiquei um tempão vigiando o cachorro naquele banco. Algumas vezes, ele gemeu, abriu os olhos, levantou-se para me farejar, espreguiçou-se e deitou-se de novo, dessa vez apoiando a cabeça sobre o meu sapato.
Muito tempo depois, quando já considerava a demora intolerável, e o cachorro, com toda a razão, demonstrava impaciência, levantando a cabeça e olhando em direção à rua onde o seu dono desaparecera, achei que a minha cortesia tinha chegado ao fim. Suponho que o cachorro deva ter chegado à mesma conclusão, pois levantou-se do piso, sacudiu o corpo e ganiu, olhando para mim, como se eu tivesse uma sugestão.
“Vamos, rapaz!” – chamei-o.
Saímos os dois em direção à minha casa. Ele me acompanhou todo garboso, olhando de vez em quando para trás, farejando os muros e aguando algumas árvores.
Assim que chegamos, soltei-o da correia – e Dog subiu num sofá. Estava feliz e tão à vontade, que rolou duas vezes sobre o forro do móvel, a ponto de permanecer por algum tempo com as patas erguidas. Aproximei-me, fiz um carinho em sua cabeça e, antes que ele se entregasse ao sono, percebi que tinha olhos cor de mel.
“Tenha bons sonhos, Dog!” – e saí para o fundo da casa.
Bem mais tarde, quando estava vendo televisão e aguardava os meus pais, vi o cachorro empinar as orelhas e colocar-se de pé. Em seguida, alguém bateu palmas na entrada. Abri a porta e lá estava Zé Limão. Ele falou com voz pastosa, a voz reconhecível dos bêbedos:
“Vim buscar meu cachorro.”
*
Alguns dias depois, quando saí da escola e atravessei a praça, atingindo em poucos minutos a 4ª Avenida, ouvi alguém chamando-me:
“Ei, moleque, venha aqui!”
Olhei para o lado de onde vinha a voz e vi Zé Limão fazendo-me gestos para eu me aproximar. Ele estava num boteco, bebendo cachaça, acompanhado de sua gangue. Antes que eu entrasse no bar, anunciou, para quem quisesse ouvir:
“Este menino, senhores, é o mais bacana do bairro!”
As pessoas que estavam com ele sorriram, assobiaram, bateram palmas e depois ficaram observando-me, à espera do próximo lance. Eu não disse nada porque não sabia o que dizer. Estava num antro de bêbedos e vagabundos. Num relance, percebi que nenhuma daquelas pessoas ganharia o céu. Quando pretendia dar as costas para eles e ir embora, Zé Limão puxou-me de supetão e disse:
“Vossa excelência tem direito a um guaraná!”
Assustado com a oferta, respondi:
“Obrigado, mas preciso ir pra casa. Minha mãe tá me esperando.”
Por mais que parecesse galã de cinema, Zé Limão era sempre mal-humorado, canastrão e agressivo:
“Você não gosta de mim?” – e lascou um tapa na minha cabeça.
Os seus amigos, além de achar correta a sacanagem que ele tinha feito, zombaram das minhas pernas finas e do meu uniforme desbotado. Foi assim que um deles falou – e riu com vontade, até engasgar-se:
“Faça esse bocó bater as orelhas! Vai ser engraçado ver ele imitar o Jumbo!”
Segurando-me com força, Zé Limão exclamou, antes de empurrar-me para o meio do círculo no qual os seus comparsas tinham me encerrado:
“Eis aqui, senhores, o melhor amigo do Dog!”
Assim que ele formulou a frase, os meliantes riram tanto, tanto, ainda mais depois que Zé Limão lascou-me outra tapa, dessa vez para impedir a minha fuga.
A minha cabeça zuniu.
Eu estava pois nessa situação vexaminosa, sem saber o que fazer, quando, como num gesto do Mandrake, Dog surgiu de repente na entrada. Surpreso e sorridente, Zé Limão esqueceu-se de mim e dirigiu-se ao cachorro, abaixando-se e batendo seguidamente as mãos nas pernas:
“Aqui, Dog! Vem aqui no papai!”
O animal sacudiu um pouco o rabo, encarou o seu dono, farejou uma tampinha no chão e seguiu adiante, no seu andar descompromissado.
Zé Limão sentiu-se afrontado com o desinteresse do cachorro. Por conta desse fracasso, empurrou-me com raiva para fora do boteco. Eu saí cambaleando, protegendo os meus objetos escolares. Assim que estava longe do bar, assobiei – e, num instante, Dog apareceu, pisando de mansinho. Depois de fazer festa comigo, sentou-se no piso e ficou olhando-me, como se esperasse o convite para uma aventura. Talvez porque soubesse que os cachorros relutam em trocar de dono, olhou para os lados, bocejou e, raio coriscante, disparou em direção a um gato que teve a infeliz ideia de aparecer na calçada.
*
Como um dos tipos desprezíveis do bairro, Gonçalves era um trambiqueiro que não costumava perder viagem. Para ganhar dinheiro fácil, contrariando um dos preceitos bíblicos, conhecia uma porção de golpes que, incontinenti, sem remorso, aplicava-os nos velhinhos, nos incautos e nos forasteiros. Um estudante lerdo, por exemplo, que não soubesse responder qual era a capital do Piauí, perderia num gesto hipnótico a sua lancheira. Nem o padre, nem o pastor, nem os espíritas – ninguém, nenhum deles, conseguia mudar a sua conduta. Nem o delegado, que fechava os olhos às sovas que levava quando estava preso e tinha a sua vida pregressa espalhada sobre o tampo da escrivaninha.
Mais dia, menos dia, Gonçalves reaparecia nos lugares costumeiros – a feira, o mercado, os bares, o cinema, os puteiros – e ficava por ali à espera do primeiro otário. Às vezes, ele se divertia mais em ridicularizar os tolos do que em depená-los. No porão escondido de suas emoções, lamentava, porém, as perdas que sofrera desde a crise que o movera em direção à cidade: as festas na roça, a meiga Joaninha, na azáfama dos bailes, vestida de chita, dançando quadrilha, sacudindo a saia e, nos movimentos mais eróticos, exibindo coxas grossas que o perturbavam.
Esse mundo antigo chegava hoje esfumaçado em suas lembranças, diluindo-se cada vez mais na oxidação dos elementos que formam a memória. Às vezes, sacudia a cabeça para afastar esses pensamentos difusos e, nesses instantes, secretamente, pensava em voltar para a roça; retornar, entretanto, seria reencontrar o irremediável: a brutalidade do latifúndio e a lida interminável na terra estéril.
Quando esses pensamentos passaram a perturbá-lo, como mil demônios dentro de sua cachola, decidiu procurar a umbanda: em certos momentos, um Exu vale tanto quanto um psicólogo.
Entre cheiros de incenso, alfazema e cachaça, seguiu o conselho do preto-velho – e foi vender a granel.
“É mió pr’ocê, meu fio – e ‘fasta o canjerê.”
A feira da Vila Nova era uma das mais animadas e barateiras da cidade. Num dos corredores, instalou a sua pequena banca, expondo sacas de mantimentos.
Um domingo, quando estava distraído, numa manhã de feira boa, Dog apareceu de repente, levantou a perna e fez um xixi jorroso na saca de açúcar, molhando-a de cima para baixo. Na sua raiva inerte, sem encontrar nenhuma ação, Gonçalves ainda conseguiu ver uma pelagem cinza sumindo no meio da multidão de pernas. Nesse momento, jurou para si mesmo, com ódio:
“Ou ele ou eu!”
Depois desse dia, Dog continuou a andar pra baixo e pra cima, em todos os lugares, farejando aqui e ali, indo de vez em quando roer um osso no seu açougue predileto, depois atravessando o quintal do Moraes, em direção ao moinho.
Como todos no bairro, Gonçalves sabia que Dog tinha um dono violento que puxava faca e exibia tatuagens. Por isso, não tinha coragem de procurar Zé Limão para pedir uma indenização que julgava merecer por conta do seu prejuízo. O desprezo que sentia pelo cachorro fazia com que dentro dele fervessem as piores vinganças.
“Ou ele ou eu!” – não se cansava de repetir, numa ladainha de semana santa.
Pouco tempo depois, quando dirigia o seu fusquinha, viu um cachorro atravessando a rua.
Sim, senhor!, era o adorável Dog! – o cachorro garboso e de pelagem cinza. Nesse momento, num ato reflexo, hesitou um segundo – e depois exclamou:
“Seria ele?” – perguntou-se.
“Zé Limão que vá à puta que o pariu!”
E arremessou o carro contra o animal jurado de morte, sem piedade e sem tirar o pé do acelerador, como uma fera sem controle, como uma besta ao volante.
*
Depois que jogou a última pá de terra na cova, tendo o cuidado de arredondar o monte que se sobressaía no terreno, o atordoado Zé Limão enxugou com um lenço o suor da nuca e, em seguida, esfregou o punho nos olhos.
Como chorara pelo seu animal querido, as lágrimas que escorreram face abaixo nunca o tornariam mais próximo dos humanos; ao contrário, cada uma delas representava balas que nasciam de sua vingança. Do ódio contra o homem que atropelara Dog. O bobão do Gonçalves, um tal da feira, que tinha um fusquinha mequetrefe. Na caldeira desse sentimento incandescente, Zé Limão enterrava definitivamente naquela cova rasa, sob o mormaço do céu, o seu animal de estimação e o seu diálogo com os cães.
“Adeus, Dog” – gemia ele, no infortúnio de separar-se para sempre do amigo querido, o único que lhe fora fiel e amara-o sem exigir nada em troca.
Enquanto cavava, lembrava-se do amigo que fora um conforto para a sua incapacidade de compreender as pessoas. Os grunhidos e latidos, assim como a alegria sincera que só os cães são capazes de demonstrar quando estão com os seus donos – tudo isso agora encerrava-se ali, junto com as lágrimas do seu rancor.
“Adeus, Dog!” – murmurou pela última vez, o coração partido, enquanto dava as costas para o túmulo e dirigia-se para casa.
Nesse instante, tinha outra urgência – lavar as dores de sua perda.
*
Já no seu quarto, abaixou-se e puxou debaixo da cama uma caixa de madeira, abriu-a e, do meio de diversas ferramentas, retirou um punhal antigo, cujo cabo, trabalhado em prata e jade, era primoroso artesanato.
Na sua vida mundana e carcerária, Zé Limão aprendera a usar os punhos e, de outro modo, se a morte pousasse em suas mãos, a empregar chuchos, facas e objetos perfurantes. Para exterminar um inseto asqueroso, mais abjeto do que uma barata de esgoto, aquele punhal talvez fosse um luxo excessivo. O seu ódio, porém, era proporcional à sua vontade de sangrar. Sangrar, sangrar aos poucos – como se sangra um porco. Sangrar o bundão do Gonçalves com um punhal contaminado de ferrugem.
Antes de sair à procura do seu inimigo número um, foi para o boteco esperar a sua alcateia. Pra começar, pediu uma dose de cachaça, que engoliu de uma vez.
Depois, pediu outra e mais outra, até que, aos poucos, os lobos foram aparecendo um a um e também pediram cachaça e todos mostraram os seus dentes – uns grandes caninos – e blasfemaram à vontade e contaram piadas e riram e ficaram bêbedos e comentaram a morte de Dog, a voz trôpega:
“Ora, quem diria, o Gonçalves fazer essa besteira!” – falou o primeiro lobo.
“Ele merece mesmo morrer!” — sentenciou o segundo, as presas tinindo como lâminas.
E o terceiro só constatou:
“O bicho vai pegar…”
Lá pelas tantas doses de cachaça, Zé Limão levantou-se, olhou para os lobos beberrões e disse triunfalmente, como os matadores fazem no cinema:
“Nesta noite, alguém vai perder a sua novela.”
E saiu à procura do Gonçalves, andando meio torto e babando o seu ódio descomunal, como se fosse um canídeo feroz saído das brumas de um conto gótico.