Esta é uma pergunta frequente feita por pessoas indignadas quando dizemos que vamos viajar para a Índia, indignação que só aumenta quando elas ficam sabendo que já visitamos o país antes e vamos retornar, para conhecer novas paisagens. Aí somos obrigados a ouvir uma enxurrada de observações sobre a sujeira, cadáveres no Ganges, diarreia, os cuidados para não beber água e comer comida de rua, esgoto a céu aberto etc.
Mas existe um chamamento, não sei de onde ele vem, que nos convida a entrar neste universo que é a Índia. Ela se mostra com todas essas particularidades e recebe o diferente com jeitinho muito amoroso: mãos postas no peito, sorriso nos lábios e um sonoro Namastê.
Não que esse lado receptivo apague toda a sujeira que os ocidentais tanto temem. A Índia se mostra como um inconsciente a céu aberto, em que a imundície é exposta junto ao sagrado. Não tem como reduzir uma viagem à Índia a um simples passeio turístico. Trata-se da possibilidade de experimentar uma outra realidade. É impossível ficar imune ao que ela nos oferece, seja caminhando por ruelas estreitas milenares com lojas sem calçadas, seja experimentando sua culinária picante vegetariana e/ou vegana, seja visitando templos com seus rituais dançantes e entoação de mantras, seja recebendo a amorosidade de seu povo com o estrangeiro, a aceitação da diferença.
As cidades indianas são todas iluminadas como se vivessem o Natal o tempo todo. Tudo brilha, tudo é colorido, desde um hotel cinco-estrelas até um pequeno comércio nas suas ruas estreitas. Também tem uma abundância de flores, como em colares para receber o visitante, os rituais de adoração dos rios, em peneiras, nas mãos, em todos os templos. Os tapetes enfeitam o chão desde o palácio de marajás até um pequeno e simples espaço. Pés descalços experimentam as várias tessituras dos tapetes.
Encontramos, melhor dizendo, tropeçamos nessa cultura milenar quando, por exemplo, percebemos que a imagem de Shiva não é uma figura humana ou testemunhamos a adoração que os sikhs têm por um livro que, estranhamente para nossa cultura ocidental, dispõe até de um quarto no templo para ser colocado para “dormir”.
Shiva é um deus hindu, uma das divindades mais importantes da Trimurti, a trindade hinduísta, juntamente com Brahma e Vishnu. Simboliza a Destruição, a Transformação. Shiva tem vários nomes que refletem sua complexidade e sua riqueza relacionadas a suas formas, como Nataraja, o Senhor da Dança, e Shankara, o Meditador, talvez a imagem mais conhecida por nós. Além dessas formas descritas, há uma representação de Shiva que não retrata a aparência humana – o Shiva linga, que representa sua natureza sem forma. O termo lingam significa marco, sinal em sânscrito, e é também o órgão reprodutor masculino. É um símbolo sagrado do hinduísmo – pequeno pilar de metal, madeira, pedra argila ou gema usado nos templos hindus. Está sempre dentro de uma plataforma com formato de disco, o Yoni, onde são colocadas as oferendas líquidas. Sua consorte, Parvati, é simbolizada pelo Yoni, órgão reprodutor feminino, descrito como a materialização da energia vital. A fusão do masculino e do feminino simbolizando o processo de criação da nossa existência.
Foi na cidade de Varanasi, nas margens do lendário rio Ganges, que visitamos o templo de Shiva: o Templo Kedarnath. É um local simples onde turistas e indianos entregam com devoção o que Shiva gosta – o banho ritualístico, chamado Abhisheka, com as águas sagradas do rio, e leite das vacas, também sagradas, que andam livremente pelas ruelas da cidade antiga de 7 mil anos. Não poderiam faltar também muitas flores.
Quem for à Índia, em Varanasi, cidade de contrastes a céu aberto, pode conhecer nas margens o hotel de luxo chamado BrijRama Palace. Trata-se de um antigo palácio em um Ghats (escadarias que levam ao Ganges). Sua arquitetura, a decoração, o serviço, as louças, a comida, tudo é simplesmente impecável. Não hesite em visitar, vale a pena conferir, mas faça sua reserva antecipada.
Vrindavan, às margens do rio Yamuna, é uma das sete cidades sagradas da Índia. Foi lá que há 5 mil anos nasceu Krishna. Hoje existem mais de 5 mil templos onde os devotos de Krishna espalham seus ensinamentos Vaishnavas. Não tem como ficar inerte diante da invocação festiva no cântico dos santos nomes de Deus.
Foi no Templo da International Society for Krishna Consciousness (ISKCON) que participamos de um ritual em comemoração a Krishna – muita dança, muito canto, muita cor, uma festa! Impossível não ser afetado pela alegria contagiante dos seus adeptos fervorosos. Hare Krishna, a abreviação do famoso maha-mantra, encontrado nos Upanishads, é uma invocação a Deus, em amor e devoção.
Todas as deidades têm um Japamala, similar a um terço. Segundo Rebeca, coordenadora do Grupo Govinda Turismo, o Japamala é composto de 108 contas, mais uma que não se conta e que marca o início/final das contas. Esta conta é chamada Meru, o mesmo nome da montanha sagrada nos Himalaias, e é a representação de Brahma, do Divino, do Absoluto. O Meru não deve ser tocado como as outras contas do Japamala. O Japamala é feito de vários materiais, por exemplo, o de Shiva é confeccionado com a semente Rudraska e o mantra a ser entoado é o “OM NAMAH SHIVAYA”. A curiosidade é que existe um Japamala Bag que, segundo Rebeca, tem um furo onde se coloca o dedo indicador para fora da bolsinha, de modo que ele não toque o Japamala, já que é o dedo que usamos para apontar os defeitos de alguém, acusar, julgar.
Em Vrindavan, fica o templo dos sikhs: Templo Sikh Gurdwara Bangla Sahib. Gurdwara significa a porta do Mestre. O sikhismo é uma religião monoteísta do século XV d.C, fundada pelo guru Nanak. É classificada como a quinta maior religião do mundo. Eles pregam a igualdade entre os homens, uma lembrança de Deus em todos os momentos da vida, e a necessidade de fazer o bem, na forma de serviços à humanidade. Possuem a maior cozinha comunitária do mundo – o Langar –, servindo em média 30 mil refeições diárias. Homens e mulheres, sem distinção de raças ou classe social, sentam juntos na esteira individual, no chão, para comerem a refeição, geralmente lentilhas amarelas e o chapati (pão indiano). As palmas das mãos são abertas e estendidas como sinal de respeito e agradecimento por todo alimento ou Prasad, a oferenda religiosa do hinduísmo, que você recebe na Índia.
Os sikhs batizados usam os cinco símbolos sagrados, os chamados cinco Ks: Kesh (não cortam os cabelos), Kara (bracelete de aço), Kanga (pente de madeira junto ao cabelo enrolado no turbante), Kachera (calção de algodão) e Kirpan (espada pequena). São símbolos que representam a fé e o compromisso com a justiça e a honestidade.
No templo sikh, a adoração é por um livro sagrado – único guia espiritual: o Livro Original. É composto por uma coletânea de textos em panjabi dos hinos religiosos do guru Nanak. Os sikhs leem ininterruptamente as 1430 páginas do livro, que pode ser expresso musicalmente através do kirtan, uma prática meditativa com canto. O livro santo chamado Granth Sahib é o ponto focal em todos os templos. É colocado em uma plataforma elevada e suas páginas são cobertas por uma manta de seda laranja e flores frescas, e a cada dia suas páginas são arejadas com um leque de rabo de iaque. Dentro do templo, existe um quarto onde se coloca o livro para “dormir”. Acredita-se que toda a adoração humana passa pelo conhecimento, pelo saber.
E assim vamos entrando num universo que se mostra completamente aberto para qualquer pessoa que queira participar dos rituais sagrados de várias manifestações religiosas. É só se abrir para o novo ancestral e se sentir vivos numa Índia que pulsa!
Penso que a Índia é como é a arte e a religião, em que o feio se mostra belo e sublime. Mas é só vivendo para entender – um instante de olhar e um espírito para sentir. Talvez não seja para todos.
Namastê!!