O capítulo mais recente envolvendo o filme Aquarius – a indicação ou não como o candidato brasileiro a uma vaga ao Oscar – foi encerrado na tarde desta segunda-feira, dia 12. O favoritismo do longa-metragem pernambucano não se confirmou e a produção escolhida pela comissão convocada pelo Ministério da Cultura e coordenada pelo cineasta Bruno Barreto foi o drama Pequeno Segredo, baseado na história real da família Schurmann, famosa por ter viajado pelo mundo num pequeno veleiro.
Aquarius, em cartaz em três salas em Goiânia, era um dos 16 títulos que concorriam para ser o indicado brasileiro ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2017. Porém, houve críticas sobre a imparcialidade do processo, pois um dos membros da comissão, o jornalista Marcos Petrucelli, da Rádio CBN, havia se pronunciado no Facebook e no jornal Folha de São Paulo, criticando o diretor pernambucano Kleber Mendonça e sua equipe, entre eles a atriz Sonia Braga. Na estreia do filme em Cannes, em maio, eles quebraram o protocolo do festival com pequenos cartazes em que denunciavam que o Brasil estava sofrendo um golpe, referindo-se ao impeachment de Dilma.
Por acreditarem que a comissão do Ministério da Cultura não era isenta o suficiente, três diretores colocaram ainda mais fogo na polêmica retirando seus filmes do processo de seleção e assim saíram da disputa Mãe Só Há Uma, de Anna Muylaert; Boi Neon, de Gabriel Mascaro, e Para Minha Amada Morta, de Aly Muritiba. A atriz Ingra Liberato e o cineasta Guilherme Fiúza, membros da comissão, aderiram ao protesto e abandonaram seus postos. Carla Camurati e Bruno Barreto substituíram os desistentes.
Aquarius ainda pode concorrer ao Oscar 2017 em outras categorias desde que entre em cartaz no circuito comercial dos EUA até dezembro. Bruno Barreto, diretor brasileiro que atuou anos em Hollywood, justificou a escolha da comissão dizendo que o filme sobre a família Schurmann tem um perfil mais apropriado para a Academia de Ciências e Artes Cinematográficas de Hollywood. Em dezembro, a Academia divulgará uma lista com nove representantes ao prêmio de melhor filme estrangeiros. Estes selecionados, por sua vez, vão passar por uma nova peneira e somente cinco vão ser escolhidos para concorrer na premiação mais importante e badalada do cinema mundial.
No filme Pequeno Segredo o centro da história é a adoção, pela família Schurmann, de uma menina portadora de HIV. Ainda inédito no circuito comercial, o longa vai ter estreias limitadas até o fim do mês de setembro, condição para ser o representante de um país ao Oscar de filme estrangeiro, e entra efetivamente em cartaz em novembro.
Impactante, “Aquarius” não segue fórmulas
O filme desbancado por Pequeno Segredo realmente não segue fórmulas e padrões que o tornem algo fácil de rotular na estante de obviedades cinematográficas. A trama de Aquarius se desenvolve em dois eixos principais. O primeiro está no título e é o nome de um prédio antigo em Recife que está prestes a ser engolido por uma construtora, ávida para demolir a edificação modesta e erguer ali um grande condomínio de luxo.
Clara (Sonia Braga), crítica de música aposentada, é o único obstáculo para o empreendimento, pois ela é a única moradora do prédio que ainda não vendeu seu apartamento para a construtora. Viúva de 65 anos, ela mora sozinha e passa os dias indo à praia, ouvindo seus antigos vinis, lendo, escrevendo, saindo com as amigas. As paredes e os objetos da casa se confundem ora com as lembranças queridas como as festinhas de aniversário dos três filhos, ora com dificuldades como a superação de um câncer de mama.
Apesar da aparência ultrapassada em relação aos edifícios luxuosos da vizinhança, o prédio de Clara está muito longe de ser um mausoléu que merece ser condenado, como alega Diego Bonfim (Humberto Carrão), o jovem engenheiro da construtora com um discurso envernizado por MBAs. Primeiro ele oferece mais dinheiro para a moradora e tenta convencê-la de que tudo o que é novo é melhor e não adianta resistir. No entanto, à medida que suas ofertas são desprezadas, o engenheiro apela para táticas diversas para alcançar seus objetivos, variando de som alto a colchões queimados, resvalando no racismo disfarçado e até em ameaças físicas.
A questão é que Clara não tem nada de velhinha indefesa como supõe o rapaz. Sonia Braga, bela, intensa e exuberante, mas sem o ar cocota de muitas atrizes de sua idade, defende sua personagem, uma mulher sensual e determinada, que após uma luta contra o câncer não vai se deixar abater – provalvelmente um dos melhores papéis de sua carreira.
Clara guarda ainda as memórias da própria juventude, quando viveu os últimos anos da ditadura militar. O assédio da construtora resulta aos poucos num clima claustrofóbico e ameaçador que evoca uma atmosfera de repressão vivida décadas atrás, mas cujos efeitos se fazem sentir na sociedade até hoje em várias esferas, como o sistema político ou os modelos de expansão urbana das grandes cidades.
Como em seu primeiro longa de ficção, o impactante O Som ao Redor, em Aquarius o espaço urbano é a arena em que se espelham as várias contradições do País. Em ambos, o cenário é uma das regiões mais valorizadas da cidade, Boa Viagem, onde se concentram a classe média e alta e os hotéis de luxo da capital pernambucana. Na orla não há mais casas e até velhos condomínios estão sendo derrubados para dar lugar a projetos luxuosos e maiores.
Novamente, o diretor Kleber Mendonça, com pleno domínio narrativo, vale-se de questões cotidianas para abordar assuntos complexos, como a ditadura, o poder econômico se sobrepondo às leis, o envelhecimento, o sexo, a morte. Com uma linguagem econômica, mas nem por isso acomodada a clichês de roteiro, ele surpreende e seduz o espectador tratando de temas diversos sem ser panfletário ou melodramático. Com a coerência de Clara, o filme transborda subversão e vida, diferentemente do conformismo travestido de modernidade e sucesso que tomou conta do cinema nacional dominado por comédias vazias e preconceituosas.