Até os nossos dias, Sócrates permanece um personagem enigmático. O pouco que dele se conhece é que era um filósofo que se comprazia em circular pelas ruas de Atenas para discutir com seus concidadãos a respeito de temas como a virtude e a justiça e que foi sentenciado à morte sob a acusação de corromper a juventude – num julgamento em praça pública, em que a maioria dos cidadãos atenienses decidiu em favor de sua condenação. Sócrates não deixou nada escrito – a sua filosofia, digamos assim, é um trabalho de reconstrução dos seus discípulos, como Platão, que procurou reproduzir o pensamento do mestre em muitos dos seus famosos diálogos.
Conforme pode ser lido nos textos de Platão, Sócrates denominava-se a si mesmo como um “moscardo”, uma “parteira” e também foi chamado de “arraia-elétrica”, um peixe que paralisa e entorpece aqueles que o tocam. Sócrates definia-se como um moscardo porque esforçava-se em “ferroar” os cidadãos, retirando-os do entorpecimento e despertando-os para o pensamento, uma atividade sem a qual, na sua concepção, a vida não valia a pena ser vivida.
E ele chamava a si próprio de uma parteira porque trazia à luz os pensamentos alheios – a filósofa Hannah Arendt comenta que esses pensamentos tratavam-se, na maioria das vezes, de “falsos fetos”. Na verdade, Sócrates “purgava” as pessoas dos preconceitos não examinados que as impediam de pensar. A comparação com a arraia-elétrica é porque ele transmitia suas próprias incertezas aos outros – lembremos da famosa frase atribuída ao ele, “só sei que nada sei”. Ou seja, apesar de estimular seus concidadãos a refletir sobre questões como justiça e piedade, ele próprio nunca oferecia respostas acabadas para essas questões.
“A comparação com a arraia-elétrica é porque ele transmitia suas próprias incertezas aos outros”
Portanto, o fato de Sócrates deixar seus interlocutores confusos e aturdidos com suas perguntas desconcertantes não ocorria em razão de ele já ter as respostas prontas e querer deliberadamente, com sua atitude desafiadora, desmascarar a ignorância alheia, expondo-a ao ridículo. Como se pode perceber, por exemplo, pela leitura de Mênon, um dos textos de Platão, se, ao longo das conversas com o filósofo, as pessoas iam aos poucos abandonando suas certezas e ficavam atônitas, tal situação se dava porque elas eram “contaminadas” pela própria perplexidade de Sócrates.
É nesse diálogo sobre o significado da virtude que Mênon, um jovem seguidor dos sofistas, ao ver suas convicções caírem por terra, usa a metáfora da arraia-elétrica para descrever o “método” de Sócrates. De forma irônica, Mênon diz a Sócrates que ele parece, tanto na aparência física quanto no modo de agir, com aquele “peixe marinho achatado”, a arraia-elétrica. “Pois tanto ela entorpece quem dela se aproxima e a toca, quanto tu pareces ter-me feito agora algo desse tipo. (…) estou entorpecido, na alma e na boca, e não sei o que te responder”, admite Mênon.
Sócrates, por sua vez, responde que a arraia-elétrica só entorpece os outros porque ela se encontra entorpecida – exatamente o mesmo fenômeno que ocorre com ele. “Também agora, a propósito da virtude, eu não sei o que ela é; tu, entretanto, talvez anteriormente soubesses, antes de me ter tocado. Contudo, estou disposto a examinar contigo”, diz ele a Mênon.
Ao final do texto, como é comum nos diálogos socráticos, Sócrates e Mênon não conseguem chegar a uma definição do que seja a virtude – é a famosa aporia, aquela encruzilhada a que o filósofo costumava conduzir seus interlocutores e ele próprio. Tudo, então, seria uma perda de tempo, já que nunca se chega a conclusão alguma?
Na opinião de Sócrates, mesmo não se sabendo o que eram a justiça e a virtude em si mesmas, só a oportunidade de pensar e falar sobre elas já era o bastante para tornar os cidadãos da pólis mais justos e virtuosos. E também a enxergar com mais clareza as iniquidades cometidas em nome de uma concepção equivocada de justiça e virtude.
Se a conduta de Sócrates poderia ser considerada “perigosa”, era justamente porque ele confrontava os preconceitos mais arraigados dos seus concidadãos. Sócrates não morreu porque era um doutrinador, movido pelo objetivo de inculcar ideias subversivas e radicais nos seus jovens e entusiastas seguidores. Ele morreu porque incitava aqueles com quem conversava a pensar por si mesmos – uma atitude que, tanto há dois mil anos quanto agora, sempre parecerá subversiva e radical a quem não consegue conviver em meio à pluralidade e à diferença.