De Brasília ? Ficção e realidade se misturam no novo filme do diretor gaúcho Davi Pretto, Rifle, exibido na quarta-feira à noite, 21, na mostra competitiva do Festival de Brasília, no Cine Brasília. No longa-metragem, sobre um jovem pastor de ovelhas no interior do Rio Grande do Sul que se vê acuado pela especulação de terras, o diretor novamente trabalha com não atores, num caminho semelhante ao do premiado Castanha (2014), seu filme de estreia.
O projeto de Rifle, conta o cineasta, é de 2010, e por isso o roteiro original sofreu várias alterações. “O centro da história se manteve, que era falar sobre o interior gaúcho, de famílias isoladas no campo, vivendo modestamente. Porém, apesar da distância, a especulação latifundiária também chega lá, obrigando essas pessoas a vender sua terrinha ou, perdendo seus poucos postos de trabalho, ir para a cidade grande”, destaca Davi Pretto.
O diretor, porém, tem um jeito bem peculiar de contar suas histórias, apostando na dramaturgia com não atores. Para interpretar os membros da família de seu filme, ele pesquisou em várias fazendas e sítios do sul do Rio Grande do Sul até encontrar personagens reais que poderiam se encaixar na ficção criada. O mais difícil, conta Davi, foi chegar ao protagonista, um rapaz misterioso, de passado obscuro, que vive como empregado em um pequeno sítio e passa a agir violentamente quando um grande proprietário quer comprar as pequenas propriedades da área.
Atores iniciantes
Em primeiro lugar, o cineasta prefere se referir ao elenco do filme como sendo formado por atores iniciantes. “’Não atores’ não me diz muita coisa, porque eles estão atuando no filme, encenando. Ao longo de meses, a equipe foi se aproximando da família, estabelecendo contato, depois familiarizando-os com a nossa escolha para a dramaturgia, em seguida acostumando todo mundo com a presença da câmera e só então filmando, mas sem ensaios. A gente falava o que queria da cena, explicava a situação e eles desenvolviam o texto. Queria muito ver o povo da região vivendo situações bem próximas da realidade deles mesmos. É um estilo de vida que está chegando ao fim”, explica Davi Pretto.
O estilo de trabalho de Rifle é parecido com o premiado Castanha, mas o caminho é inverso. O longa-metragem de 2014 começou como um documentário para contar a vida de um transformista de Porto Alegre e depois, durante as filmagens, é que a ficção entrou em cena. “O Dione Ávila de Oliveira foi um achado. Na nossa pesquisa, quando me deparei com ele, que foi nos receber numa porteira, fiquei impressionado com seu jeito bravo, cara de mau, poucos amigos. Mas, na verdade, ele estava preocupado com um caso de violência da região e viu a nossa equipe como uma ameaça. Depois o Dione se revelou um cara muito brincalhão, mas também um ator incrível, muito focado”, recorda-se o diretor.
Inicialmente a equipe do longa não pensava em fazer concessões ao cinema de gênero, mas, com o desenvolvimento do roteiro, que passou por várias versões ao longo dos anos, a conexão com o western aconteceu naturalmente. “Daí vimos esses pontos em comum com o faroeste, como o herói cheio de mistérios, de cara dura, que não fala sobre sua vida anterior ou de parentes. Por outro lado, muita gente tem comparado nosso filme com Aquarius, uma coincidência que me deixa muito feliz, pois o filme do Kleber Mendonça é incrível”, elogia Davi Pretto.
“O nosso Dione também luta contra um assédio. Nosso filme fala sobre o agrocomércio e a especulação fundiária rural e Aquarius aborda a especulação imobiliária “, compara. “Estamos enfrentando situações nesse país que pedem resistência”, diz o diretor. Ao apresentar o filme no palco do Cine Brasília, ele e toda a sua equipe usavam camisetas com a inscrição “Cinema contra o golpe”.
Análise/Rifle
Realidade derramada na ficção
Ainda não se sabe como seria um filme de ficção com elenco tradicional dirigido pelo cineasta gaúcho Davi Pretto, mas quem assistiu a Rifle não pôde duvidar de sua capacidade em captar a dramaturgia de não atores, ou atores iniciantes, como ele prefere chamar. Embora ele destaque a importância do contexto social do filme, criado a partir da realidade concreta do esvaziamento do campo e da expulsão dos agricultores para as grandes cidades, são o drama e o suspense que saltam aos olhos.
O domínio narrativo para contar a história de Dione, um pária da especulação fundiária rural que se transforma num justiceiro perigoso, é exemplar. Conciso em explicações, o filme se derrama no desenho de som, que dialoga e completa a atmosfera de suspense que toma conta da trama aos poucos, e na fotografia que dimensiona o isolamento dos personagens e a natureza implacável dos pampas na fronteira com o Uruguai. Apesar de a identidade gaúcha ser um tema, o bairrismo e o folclórico felizmente passam longe da narrativa.
De drama social sobre o agrocomércio, o filme transborda para o suspense e o fantástico, passagens que se dão sobretudo nas lacunas do roteiro. Mesmo quando a direção assume as referências ao cinema de gênero, a narrativa não se esvazia de sentido. Ao contrário, a mistura entre o realismo da produção e a ficção pura de personagens como um lendário ladrão de gado só reforçam sua riqueza e demonstram o grande potencial de Davi Pretto e sua equipe, reiterando a boa surpresa que foi Castanha. Ao extrair dramas pessoais de uma denúncia sociológica, estruturados em um roteiro solto, mas consistente, Rifle se confirma como um forte candidato a alguns Candagos, o troféu do festival.
A colunista de ERMIRA viajou a convite da organização do Festival de Brasília