De Oakland, Califórnia (EUA) – Há décadas o debate em torno da questão racial nos Estados Unidos não se apresentava com contornos tão definidos. O discurso de intolerância racial de Donald Trump, o candidato republicano à Casa Branca; a série recente de assassinatos de cidadãos negros envolvendo policiais, que desencadeou distúrbios e manifestações, e a polêmica apresentação da cantora Beyoncé no Super Bowl, a final do campeonato da Liga Nacional de Futebol Americano, o evento esportivo mais assistido do ano, parecem levar 2016 a uma viagem ao passado, há 50 anos. Lá nascia o Partido dos Panteras Negras, a mais emblemática organização pelos direitos civis dos negros norte-americanos lembrada por Beyoncé em sua apresentação, que irritou os conservadores. Talvez por isso, o cinquentenário dos Black Panthers ganha força e atenção.
Oakland, na Califórnia, a cidade-mãe dos Panteras Negras, preparou um grande evento neste mês de outubro para lembrar a importância histórica da organização que surgiu há exatos 50 anos. Além de manifestação pública e um concerto em um parque da cidade, diversos ex-membros e simpatizantes do partido vão se reunir até domingo numa conferência intitulada Where Do We Go From Here?, no Oakland Museum of California. Desde o início do mês o museu sedia a exposição All Power to the People: Black Panthers at 50, que reúne depoimentos, fotografias, vídeos e o manuscrito original da antológica plataforma de dez pontos do partido.
Punhos cerrados
Um dos momentos emblemáticos da organização foi a marcha a Sacramento, capital da Califórnia, em 1967. Com punhos cerrados para o alto e armados, os Panteras Negras protestaram contra a Lei Mulford, que proibia o porte de armas carregadas em público numa clara resposta à filosofia de autodefesa do grupo. Cinco integrantes foram presos.
Naquele ano, Huey Newton, cofundador dos Panteras Negras, foi acusado de matar um policial de 23 anos durante uma blitz. Ferido e algemado a uma maca, saiu do hospital para a prisão, desencadeando uma mobilização pela sua liberdade.
Em 1968, dois dias após o assassinato de Martin Luther King, o primeiro membro dos Panteras Negras, Bobby Hutton, foi morto por policiais em Oakland ao sair da casa onde estava com as mãos para cima. Novos protestos varreram o país. O poder de mobilização do partido levou o então chefe do FBI, J. Edgar Hoover, a descrevê-lo como “a ameaça número um para a segurança interna dos Estados Unidos”, dando início a um combate vigoroso contra os ativistas.
Quase todos os escritórios do partido foram invadidos. Em Chicago, os alimentos do programa de lanche às crianças foram queimados. Na mesma cidade, Bobby Seale foi preso quando participava da Convenção Nacional Democrata, acusado de incitar motins. Sem direito a advogado, amarrado e amordaçado, ele foi condenado a quatro anos de prisão. Em 1969, 25 membros do partido foram mortos. Além das execuções e das prisões, o FBI infiltrou-se na organização, produzindo rivalidades e disputas internas e minando as atividades dos Panteras Negras, que desapareceram por completo em 1982.
Uma pequena mostra dos esforços do FBI para implodir o partido está retratada numa obra da artista plástica Sadie Barnette, exposta no museu de Oakland. Filha de um membro da organização, ela obteve as 500 páginas de arquivos do FBI referentes ao seu pai e os transformou em uma obra multimídia, uma espécie de papel de parede.
Aos 64 anos, Fredrika Newton, ex-membro da organização e viúva do seu cofundador Huey Newton, estará presente na conferência. A uma emissora local de TV, ela lembrou que muitas pessoas se entregaram, sacrificaram suas vidas e seus relacionamentos para se unir ao movimento. Sua expectativa é de que a semana comemorativa seja uma chance para o diálogo e para que as gerações mais novas ouçam aqueles que fizeram parte dos Panteras Negras. “Elas podem aprender com nossas vitórias ou com nossos erros para ter a coragem de assumir suas convicções”, disse Fredrika.
“A pantera foi escolhida como o símbolo do partido porque o ataque só ocorreria quando fossem encurralados ou provocados.”
Ex-presidente dos Panteras Negras na década de 1970 e atual ativista de direitos humanos, Elaine Brown, 73 anos, também considera este cinquentenário significativo. “Temos uma última oportunidade para nos unir e deixar algo valioso. O momento é crucial. Temos um presidente negro, alguns artistas proeminentes e nomes no esporte, mas, quando olhamos para o status social dos negros de hoje, o nosso desenvolvimento econômico, policiais atirando em homens negros desarmados, todas as mesmas coisas que estavam presentes em 1966, as pessoas têm raiva”, disse ao East Bay Times, jornal de Oakland.
Livros e Filmes – Em Nova York, a Steven Kasher Gallery mantém até o final do mês a exposição Power to the People: The Black Panthers in Photographs by Stephen Shames and Graphics by Emory Douglas. Shames foi uma espécie de fotógrafo oficial dos Panteras Negras e Douglas trabalhou no jornal mantido pela organização. A mostra é uma extensão do livro Power to the People: The World of the Black Panthers, escrito por um dos fundadores do partido, Bobby Seale, com mais de 200 fotografias de Stephen Shames, publicado recentemente.
Em Washington, o Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana, aberto em setembro por Barak Obama, o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, traz galerias específicas sobre segregação racial e a luta pelos direitos civis. Nas últimas semanas, o museu tem recebido um grande número de visitantes, que às vezes precisam se inscrever em filas de espera para entrar em algumas de suas galerias.
Ao estrear no ano passado, no Festival de Cinema de Sundance, o documentário Panteras Negras – Vanguarda de uma Revolução, de Bobby Seale, abriu oficialmente as comemorações do cinquentenário, entrando no circuito comercial em fevereiro. Elogiado pelo público em geral, o filme tem sido contestado por alguns ex-integrantes do partido. Elaine Brown o rejeitou, alegando ser “um paliativo bidimensional para brancos e negros que se sentem confortáveis no status quo opressivo da América”. Bobby Seale, que aos 79 anos continua ativo escrevendo livros e fazendo conferências ao redor do mundo, disse há poucos dias que pretende lançar até o ano que vem o seu próprio documentário.
Na cultura pop
Os Panteras Negras influenciaram decisivamente a cultura pop na segunda metade do século 20 através do movimento black power. O partido encorajou seus integrantes a amar a cor de sua pele e seus cabelos afro. “Black is beautiful” tornou-se um grito de resistência aos padrões de beleza europeia. A identidade autêntica tornou-se uma inspiração para o mainstream. A linguagem da estética black power invadiu a moda, as artes plásticas, o cinema e a música.
Stanley Nelson, diretor do documentário sobre os Panteras Negras, disse que, num primeiro momento, ficou surpreso e chocado quando viu as bailarinas de Beyoncé com cabelos afro, roupas e boinas pretas na final da Super Bowl. “Mas também foi lindo. Sua influência duradoura foi realmente cultural. Você não pode imaginar hip-hop sem os Panteras Negras”, afirmou.
Os envolvidos nas comemorações dos 50 anos dos Panteras Negras esperam resgatar e transmitir aos mais jovens a importância do legado do partido na luta pelos direitos civis como uma referência positiva para o futuro. Curador do Oakland Museum of California, Rene de Guzman comentou que esta não é uma tarefa fácil. “As impressões negativas são comuns até hoje. A percepção predominante é de militância na melhor das hipóteses e criminosa, na pior.”
O que queremos, em que acreditamos
O Partido dos Panteras Negras pela Autodefesa, seu nome original, foi fundado em 1966 em Oakland por Bobby Seale e Huey Newton, ativistas do movimento dos direitos civis que varria os Estados Unidos. Naquele ano, 32% dos negros viviam abaixo da linha de pobreza e 71% dos pobres das áreas metropolitanas eram negros. A primeira tarefa de Seale e Newton foi escrever um programa para o partido contendo dez itens que tinham como sustentação dois questionamentos: o que nós queremos e em que acreditamos.
O programa enfatizava a necessidade de justiças econômica e social, liberdade para os negros, educação, habitação e o fim da brutalidade policial e assassinatos. No documento, Seale e Newton defenderam a autodefesa, uma vez que a Constituição dos Estados Unidos autorizava os cidadãos a portar armas. Com mil exemplares impressos, o programa foi distribuído nas ruas pela dupla e pelo primeiro integrante, Bobby Hutton. O escritório do partido foi aberto em janeiro de 1967.
Política de segregação racial
O surgimento dos Panteras Negras foi uma consequência do movimento dos direitos civis então em andamento nos Estados Unidos. O estopim da revolta negra à política de segregação racial ocorreu em 1955 quando uma viúva de Montgomery (Alabama), Rosa Parks, se recusou a ceder seu assento em um ônibus a um homem branco. Com mais de 50 anos, ela voltava do trabalho e alegou cansaço ao motorista que fez a exigência. Em resposta, ela foi arrastada para fora do ônibus e multada em U$ 10. Rosa Parks foi a primeira pessoa negra a violar as leis de segregação da cidade.
Na época, as igrejas eram os únicos lugares onde os negros se reuniam livremente e o mais conhecido pregador de Montgomery era Martin Luther King. Ele liderou um boicote em massa aos ônibus, que se revelou eficaz e se espalhou por várias outras cidades do sul do país. À medida que a luta avançava, os serviços das igrejas negras eram substituídos pela discussão política. A mobilização, que resultou também em mortes e milhares de prisões, levou o governo a instituir, em 1957, a Lei dos Direitos Civis. Depois de resistir um ano, o Alabama concordou em decretar o fim da segregação no transporte público.
Em meados do século 20, a comunidade negra norte-americana sentia os pesados reflexos da Segunda Guerra Mundial. Mais de 3 milhões deles foram registrados nas Forças Armadas para o conflito e cerca de 500 mil serviram no Pacífico, na África e na Europa em unidades racialmente segregadas. Sem dinheiro para sustentar suas famílias, um milhão de negros sulistas migraram para o norte entre 1941 e 1946. Enquanto a população negra reduzia nos campos, sua concentração crescia nas periferias das grandes cidades. Com o fim da guerra, menos dispersos e organizados em sindicatos, os negros passaram a ter maior consciência dos seus direitos e dos caminhos para conquistá-los.
Quando o não de Rosa Parks no transporte público do Alabama desencadeou os protestos contra a segregação racial, um terço dos líderes do movimento pelos direitos civis era formado por pastores como Martin Luther King. Foi por isso que a principal estratégia adotada na fase inicial foi a desobediência civil e a resistência passiva. Entretanto, àquela altura já havia outros negros mobilizados que não concordavam que o caminho para a igualdade fosse uma mudança nos corações e mentes da América racista.
A pressão, as constantes ameaças e até mesmo os assassinatos de manifestantes em prol dos direitos civis levaram uma nova geração de negros a abandonar a abordagem pacífica. O ano de 1963 foi, talvez, o mais crucial para as rebeliões que varriam o país. Em mais de uma centena de cidades houve protestos, dez manifestantes morreram, milhares se feriram ou foram presos. O ano terminou com a gigantesca marcha de 250 mil pessoas em Washington, que forçou o governo a aprovar uma nova e mais ampla Lei de Direitos Civis.
A filosofia de autodefesa tinha sido implementada por Malcon X, também ativista dos direitos dos negros, assassinado um ano antes. Os Panteras Negras levaram isso às últimas consequências. Em uma ocasião, ao testemunhar um oficial revistar um jovem, eles desceram do carro armados e ficaram observando. O policial os ameaçou de prisão, mas Huey Newton, com um livro jurídico numa mão e a arma na outra, defendeu seu direito constitucional de portar uma arma. Eles deixaram claro que não atirariam, a não ser em caso de legítima defesa. Uma multidão surpresa assistiu à cena. Os Panteras Negras aproveitaram para distribuir cópias do programa de dez pontos e convidar as pessoas para reuniões políticas. Nervoso, o policial abandonou o local.
Para a maioria das pessoas, o porte de armas era um passo positivo, mas outras buscaram o partido pela imagem militarista traduzida pelo uniforme desenhado por Bobby Seale: casaco preto, boina preta e camisa azul. Os Panteras Negras tiveram de fazer um trabalho de conscientização política, envolvendo seus integrantes em programas comunitários como clínicas de saúde e um lanches distribuídos às crianças em idade escolar. O sucesso do partido foi imediato. Em pouco tempo, os Panteras Negras contavam com 5 mil trabalhadores em tempo integral nas 45 filiais em todo o território norte-americano. No seu auge, venderam 250 mil jornais por semana.
Embora o movimento tenha sido sempre associado à figura masculina, até o início dos anos 70 as mulheres correspondiam a 70% do partido e desempenharam papéis cruciais. Entre os nomes que assumiram funções de liderança ou influenciaram a direção dos Panteras Negras estão Kathleen Cleaver, Assata Shakur, Elaine Browne e Angela Davis.
Ótimo texto !
Ótimo artigo. Na penúltima foto não è Bob Seale que aparece e sim Fred Hampton.