Em uma eleição tensa e disputada, um homem que não é do espectro político tradicional derrota um oponente de larga trajetória na área. Assim, os Estados Unidos têm um novo presidente que conquista seu eleitor com um discurso ultraconservador, que prega o isolamento norte-americano, que demonstra simpatia com um líder expansionista europeu e que defende ideias xenófobas, racistas e de exclusão de outros povos. Estou falando de Donald Trump? Não, estou descrevendo uma obra de ficção. Quer dizer, antes de o magnata raivoso conquistar nas urnas o direito de ocupar a Casa Branca, parecia só ficção.
No livro Complô contra a América, o escritor Philip Roth, um dos maiores nomes da literatura norte-americana atual, imagina uma eleição até agora impensável. No enredo, a disputa presidencial de 1940 opõe o candidato democrata Franklin Roosevelt, que tentava o terceiro mandato, e o herói nacional, o aviador Charles Lindberg, representante dos republicanos. O primeiro quer apoiar os aliados contra a Alemanha Nazista, que havia deflagrado a Segunda Guerra Mundial em solo europeu no ano anterior. O outro, apoiado por forças retrógradas, não quer confrontar Hitler e até compartilha de muitas de suas ideias que demonizam outras culturas e religiões.
No romance, Lindberg leva a melhor e imprime à sociedade norte-americana um receituário terrível, em que pessoas são separadas por seus credos, suas ideologias, suas etnias, enquanto Hitler nada de braçada em uma Europa fragilizada. Inicia-se, assim, uma verdadeira caça às bruxas contra judeus e outras minorias. Os Estados Unidos, com uma política ultranacionalista, de disseminação do ódio ao diferente, de intolerância e desrespeito pela divergência, entram com Lindberg em uma espiral nociva. Na história de Roth há um tempero de espionagem a mais, mas é inevitável fazer o paralelo entre a ficção do escritor e a realidade vivida hoje pela maior potência do mundo.
Os paralelos feitos com os anos 1930 podem parecer, à primeira vista, um tanto exagerados. Em certa medida, graças a Deus, são mesmo. Porém, também é inegável que há correspondências para lá de incômodas. Oitenta anos atrás, o mundo vivia uma ebulição que vitaminou a ascensão de partidos e figuras políticas que pregavam o fechamento de fronteiras, a perseguição a imigrantes, o recuo em direitos sociais, a desconfiança entre as pessoas. Isso tudo tem ocorrido agora em várias partes do globo, com o agravante de que os Estados Unidos, com a eleição de um homem que exala ódio por todos os poros, entram neste terrível movimento.
Nos anos 1930 havia uma potência que queria conquistar territórios e exercer sua influência sobre as nações vizinhas, ainda que fosse na marra. Para isso, a Alemanha nazista contava com um exército forte e uma população entre engajada em tal projeto e passiva quanto aos desdobramentos disso. Hoje, a Rússia faz questão de pisotear tratados firmados depois da Segunda Guerra Mundial, anexando territórios como a Crimeia e mostrando os dentes para os países do Báltico e até da Escandinávia, com movimentos militares, ameaças e provocações. Se nos anos 1930 os EUA demoraram a reagir às ambições de Hitler, agora Trump elogia ostensivamente Vladimir Putin.
Ao mesmo tempo, a xenofobia cresce agora como floresceu naquela época. Nos anos 1930, o antissemitismo foi uma obsessão do discurso nazista, levando a rodo outras nações. Hoje, o alvo maior são os árabes em geral e os muçulmanos em particular. O Velho Continente tira seus fantasmas do armário, fechando as portas para os refugiados da Síria, da Líbia, do Iraque que fogem da morte certa em guerras em que os europeus estão envolvidos. Uma situação que leva a França a arrasar com acampamentos, deixando crianças ao relento, e a Inglaterra a sair do bloco europeu para não ter responsabilidade alguma sobre o destino dessas milhões de pessoas.
E como se tudo isso já não fosse grave, um islamofóbico como Donald Trump é eleito presidente dos Estados Unidos com a promessa de impedir qualquer muçulmano de colocar os pés na América. De quebra, ainda quer separar os EUA do México com um muro, xingando os latino-americanos de bandidos e porcos. Isso porque a população latina na América já é uma parcela importante, movimentando a economia e enriquecendo sua cultura. O conservadorismo doente e cego, porém, não vê esse tipo de coisa e um candidato apoiado pelo grupo racista Klu Klux Klan (que nos anos 1930 estava em plena atividade em um país com leis de segregação em vigor) chega à Casa Branca.
“Trump é assim. A tinta laranja de seu cabelo ridículo não afetou seus neurônios a ponto de tirar dele essa leitura. O que ele faz é explorar os piores sentimentos de pessoas fanáticas, que ensinam seus filhos a usar armas com cinco anos de idade, que acreditam que gays e feministas são filhos do demônio, que se sentem desesperançados por terem perdido o emprego.”
Dados todos esses contextos, parece que entramos em uma máquina do tempo e voltamos oito décadas no passado. É bom lembrar que não se trata apenas de uma disputa política. Esse recuo é extremamente perigoso e triste. O livro de Roth faz a exata representação disso ao descrever episódios de discriminação que uma família judia passa a sofrer em seu cotidiano depois que um ultranacionalista chega ao poder. Eles precisam mudar de bairro, encontram problemas no emprego, não conseguem sequer se hospedar em um hotel. E o que vocês acham que acontece agora em países como a França e a Grã-Bretanha? E o que vai ocorrer nos Estados Unidos de Trump?
Há quem defenda tais posturas como se fosse uma proteção, uma prevenção. Outros têm a exata noção de que estão diferenciando pessoas pela cor de sua pele, por sua preferência religiosa ou sexual, pela sua origem e fazem questão de colocar essa máquina de moer gente para funcionar. Trump é assim. A tinta laranja de seu cabelo ridículo não afetou seus neurônios a ponto de tirar dele essa leitura. O que ele faz é explorar os piores sentimentos de pessoas fanáticas, que ensinam seus filhos a usar armas com cinco anos de idade, que acreditam que gays e feministas são filhos do demônio, que se sentem desesperançados por terem perdido o emprego. O mundo fica mais violento após uma crise. Nos anos 1930, foi assim após a Grande Depressão de 1929. Agora, ainda há rescaldos da quebradeira de 2008.
“Bem-vindos aos anos 1930, minha gente! Foi justamente essa impressão de que tudo ia muito mal, com a convicção de que era necessária uma mão forte a comandar seus destinos, que fez multidões seguirem líderes demagogos, que espumavam enquanto falavam, que convidavam seus eleitores a empreenderem cruzadas ideológicas, religiosas, intolerantes. Revivemos esse cenário preocupante.”
Bem-vindos aos anos 1930, minha gente! Foi justamente essa impressão de que tudo ia muito mal, com a convicção de que era necessária uma mão forte a comandar seus destinos, que fez multidões seguirem líderes demagogos, que espumavam enquanto falavam, que convidavam seus eleitores a empreenderem cruzadas ideológicas, religiosas, intolerantes. Revivemos esse cenário preocupante. Quando um homem que trata as mulheres como meros objetos sexuais, que caçoa de pessoas com deficiências físicas, que desrespeita credos, que estereotipa povos inteiros, que mente flagrantemente em várias ocasiões é alçado à presidência dos Estados Unidos, é hora de ligar a luz amarela. Os anos 1930 estão batendo a nossa porta. E todos sabemos a selvageria que eles gestaram.