Talvez, se eu der conta, tenho a pretensão de escrever como mulher, e não sobre a mulher ou da mulher, mesmo que esses pontos sejam da ordem da intersecção. Para além das oposições ou posições binárias… Mas quero tentar uma escrita do feminino.
O que é ser feminino ou feminina? O que quer uma mulher?
Tantos homens escrevem sobre o que é o feminino, não sei com que propriedade, mas escrevem e às vezes até acertam… Dizem que possuem alma feminina, exemplo disso são as canções de Chico Buarque: “Quero ver o que você faz ao sentir que sem você passo bem demais… que me pego cantando sem mais nem por quê”. Lava a alma feminina!
Mas as indagações sobre o continente negro, como diz Freud, podem ter muitas supostas e tendenciosas respostas, porque nem nós sabemos o que queremos. Segundo Serge André, no livro A Impostura Perversa, o enigma da feminilidade assume uma dupla função, dependendo do sexo: faz falar os homens e calar as mulheres. Por que nos calamos?
Nossas buscas internas se confundem com o imaginário de uma cultura, em que, ao longo do tempo, a mulher se constitui como bem de troca, como afirmou Lévi-Strauss no seu livro Estruturas Elementares do Parentesco.
Isso fica claro em algumas cenas cotidianas: quando somos “obrigadas” às exigências de uma transa que, ao ser recusada, por qualquer motivo, bate na rejeição e, aí, você tem de escutar a ameaça de haver outra mulher, você não o está satisfazendo, você não pode satisfazer o seu desejo de simplesmente não estar a fim, não pode não querer. Nos casos de estupro, a culpa recai na maneira ou jeito insinuante da mulher. Exemplo disso é o que aconteceu, recentemente, no caso do estupro coletivo no Rio de Janeiro. Nem amamentar em público não pode mais – atiça o desejo do marmanjo que quer ser amamentado. Pode?
Enquanto não nos preocupamos, no papel de mães, de deixar os filhos homens irem para casa de coleguinhas, como nos preocupamos com nossas filhas! Nunca pensamos, erroneamente talvez, que uma mãe possa seduzir e bolinar nosso filho. Nos filmes pornôs, a mulher se submete ao desejo do homem e tem que olhar para a câmera e fazer caras e bocas para agradar a plateia. O homem, nem sempre aparece a cara dele, o principal é seu órgão em ereção, isso já basta, mesmo que seja pela via do Viagra. O tanto que se escuta dos sensíveis companheiros o quanto fulana é gostosa, que tesão aquela mulher, que pernas, que bunda, que peitos … arre! E agradeça a Deus por aquele homem ter tesão por você. Se você não quiser, tem alguma coisa errada: é fria, insensível, indisponível… não podemos não desejar. “Seja uma dama socialmente e uma puta na cama” , quem não escutou essa frase ao longo da vida? O que eu quero? É uma lei?
Ao oferecer seu corpo ao gozo do Outro, a mulher torna-se, para ela mesma, seu próprio fetiche e quanto mais encarna fantasias perversas, mais causa o desejo do homem. Interessante ressaltar que o fetichismo é uma disposição masculina. Ele se funda sobre o mecanismo da denegação da realidade de uma percepção traumatizante: a ausência do pênis na mãe e, consequentemente, na mulher. O corpo da mulher é o seu falo. Nada de errado nisso, esta pode ser uma via de prazer, mas não obrigatoriamente a única via. Assujeitada ao desejo do Outro, ocupando este lugar de objeto a, objeto não de desejo, mas causa de desejo, a mulher é tomada como instrumento e objeto de perversão.
No primado do feminino que mascara o vazio da feminilidade, o sujeito desaparece ao ocupar o lugar de objeto, o que nos mostra a impossibilidade da representação do feminino.
“No primado do feminino que mascara o vazio da feminilidade, o sujeito desaparece ao ocupar o lugar de objeto”
O erotismo é levado ao extremo, como no filme de Pier Paolo Pasolini, Saló ou Os 120 dias de Sodoma, baseado no livro de Marquês de Sade e, também, em outra obra, de George Bataille ? A História do Olho ? em que se presentifica a angústia e não o prazer. Segundo Bataille: “O sentido último do erotismo é a morte”.
Se nossos corpos nos pertencessem, teríamos menos culto à juventude, consequentemente menos intervenções cirúrgicas, menos críticas, como acontece a figuras públicas, como Beth Faria, Brigitte Bardot, Vera Fischer nas redes sociais – que denunciam o quanto é vergonhoso ter um corpo envelhecido e mostrá-lo.
Meu Deus, invoco Deus, se existe realmente um Deus. Que coisa chata! Literalmente no sentido da palavra, segundo Larousse: estreita, sem relevo, enfadonha, maçante, importuna, monótona e, ainda, como inseto anopluro que vive principalmente na região pubiana.
Não proclamo a igualdade entre os sexos, mas a liberdade de ser e se relacionar na diferença: não queremos submeter o outro aos nossos desejos a não ser que seja de comum acordo; dispor do nosso corpo como queremos, pois ele primeiramente pertence a nós, não como objeto de uso; termos a liberdade de ir e vir quando quisermos; envelhecer em paz: não exigimos homens sem cabelos brancos, peitos eretos, malhados, eroticamente insaciáveis, que fiquem pulando no nosso pescoço o tempo todo.
A pulsão está entre o psíquico e o somático. Nossos sentidos inebriam tanto nosso corpo como nossa alma. Assim seja! Em nome do amor, mas onde está mesmo o amor?