Tancredo Neves morreu. Vocês ainda se lembram dessa morte? Desse dia?
Estamos em 1985, uma manhã de abril. A vigília, que reuniu adeptos de diversas religiões nos dias de seu internamento, desaparece espontaneamente da porta do hospital, guardando as suas preces. A população ganha de repente as ruas, correndo alucinada atrás do carro dos bombeiros, que conduz o esquife. São Paulo, a de sempre, cinza e monótona, emoldura as cenas. Eis o carro dos bombeiros que se dirige lentamente para o aeroporto. A emissora que transmite as imagens insiste em sobrepor a melodia de uma de suas músicas preferidas, Coração de Estudante, num arranjo monótono.
Por que essa morte tão inesperada movimenta − do inusitado ao grotesco, do comum ao estranho − as emoções populares? O fim das esperanças ingenuamente perdidas? Mais uma anedota sobre os dramas brasileiros?
Tancredo, o que quase foi presidente. A estaca no coração da ditadura.
Estou ainda atento ao noticiário da tevê, superposto às imagens que descrevem os sucessivos acontecimentos, quando Zulu, o gato, num salto elegante, se acomoda delicadamente no meu colo.
“Bom dia, Zulu, o nosso presidente morreu!”
O gato olha-me com uma expressão matreira, quase irônica, e desce em seguida, ganhando a direção da varanda. Esqueço o gato e examino a imagem do vice Sarney, em plano americano, abrigado dentro de seu jaquetão de cor escura.
Não sei por que o seu rosto lembra o de uma caricatura felina, dessas de bicho que esconde as suas intenções. Qual júbilo, como o dos gatos ladinos, o vice demonstra sem desfaçatez, entre um olhar triste e ao mesmo tempo triunfal? Parece-me − e esta é uma impressão fugaz − que se regozija com a possibilidade do poder, maquinando o pulo sobre a presa.
Na nossa experiência republicana, os vices nunca foram grande coisa. Quando não são inúteis, são conspiradores, esses homens de meia estatura, esses vices que enfeitam os cerimoniais porque não têm uma função política de destaque.
Durante o deslocamento do esquife − e depois no velório −, observo um fato mal analisado em nossos costumes: o funeral de um presidente do Brasil é algo improvisado e antissolene, parecido com uma Quarta-feira de Cinzas. Um carnaval triste, às avessas. Nada semelhante, do ponto de vista ritual, às exéquias de um estadista russo ou francês, para lembrar os exemplos mais antigos de Kruschev e de De Gaulle. Nesses países, pelo sentido que a morte dá ao grande homem público, só um estadista merece uma missa de réquiem.
“Presidente Sarney”, penso, “você agora está com o peixe na mão, mas não tem a agilidade de um felino, porque parece um bichano de forno de lenha.”
Um gato oligárquico e patrimonialista, um gato safado, que cobiça a sardinha do vizinho − se esta não for uma classificação por demais aviltante.
As cenas na tevê mostram a catarse que se acumulou no sentimento popular durante o período em que esteve internado. Pode ser que alguém ainda faça um estudo sobre o que simboliza o presidente da República para as pobres e sempre almejadas, mas nunca concretizadas, esperanças do povo brasileiro. Talvez alguém nos dirá, um dia, que valeu a pena acreditar em nossos condottieri.
O que morreu afinal? Que morte dupla é esta que presenciamos ao vivo comovidos diante do aparelho de tevê? Que redoma é esta que esconde o futuro?
“Povo brasileiro, estamos fritos!”
De onde estou, vejo Zulu brincando sozinho no quintal, enquanto a tarde nos envolve − a todos nós, os vivos e os mortos −, como uma mortalha que nos adormece lentamente.
(De Entre as Folhas do Jardim, livro de crônicas inédito)