Quando Pablo Neruda leu aqueles versos, ele lhes concedeu sua atenção. Leu e releu. Avaliou a lírica, auscultou o ritmo, reconheceu a métrica. E em uma empoeirada Goiânia no já longínquo ano de 1954, sentindo possivelmente muito calor de um Cerrado que parece tão inclemente para quem vinha das temperaturas amenas do Chile, ele atestou que aquele poema era o melhor entre os concorrentes a sua frente. O homem que viria a ganhar o Nobel de Literatura visitava a jovem capital goiana para participar de um encontro internacional de intelectuais e conhecia ali o trabalho de Benedito Rocha, um autor que não gostava muito de mostrar seus trabalhos em público, mas que decidiu entrar no concurso que tinha Neruda no júri. Entrou e ganhou.
O poema premiado é A Caraíba, obra que homenageia a frondosa árvore de um Cerradão cada vez mais raro, que amarela os campos com suas flores e que fornece generosa sombra. É uma poesia de cunho regionalista, formalmente bem trabalhada, que revela, ao mesmo tempo, refinamento e singeleza. Esses versos voltaram à tona este ano, nas comemorações do centenário de nascimento de Benedito, uma série de eventos e lançamentos promovida por seus filhos, muitos deles jornalistas de destaque em Goiás. As celebrações incluíram o lançamento de um livro, que reúne toda a obra do homenageado, um filme sobre sua trajetória e eventos culturais em Goiânia e Corumbá de Goiás, sua cidade natal.
A Caraíba
Ao vê-la, galhos secos, angulosos
perdida num recanto de Cerrado
tronco encoberto em casca suberosa
e a folhagem de um verde descorado
certo o botânico, o naturalista
por ela não dariam quase nada
(Talvez nem mesmo conste em sua lista
um nome para essa árvore enfezada).
No entanto, mal o mês de agosto vindo
Ei-la vestida em gala suntuosa
toda de ouro, solene, majestosa
– u’a mancha amarela colorindo
a paisagem monótona dos campos.
Fala o poeta:
– Que arbusto lindo
aquele ao longe, transbordando em flor!
E o roceiro, entendido na matéria:
– Aquela é caraíba, seu dotô…
O título Memórias de Rocha – Vida e Obra de Benedito Odilon Rocha é um verdadeiro resgate de poemas, crônicas, artigos, diários e até partituras de sua autoria. A organização ficou a cargo de Ana Cláudia Rocha, colunista do jornal O Popular e filha caçula do homenageado. “Não queríamos deixar a data passar em branco. Muito antes eu estava pensando em fazer algo, mas tinha que reunir o material para isso”, explica. “Meu pai não gostava de se mostrar, apesar de escrever todos os dias. Ele demorou 50 anos para publicar o primeiro livro, o que só aconteceu em 1988. Em 1990 ele foi eleito para a Academia Goiana de Letras e, 40 dias após a posse meu pai, sofreu um enfarte e morreu. Ele, na verdade, não viveu essa vida de escritor, apesar de ter sido um escritor a vida inteira”, lamenta Ana.
Ao mesmo tempo, foi lançado um filme, chamado Floração de Caraíba, dirigido pela escritora Cássia Fernandes, sobre a vida de Benedito. A produção traz depoimentos de familiares, vídeos que registram parte do cotidiano de Benedito e as muitas facetas de um homem de múltiplos talentos. A primeira cena, por exemplo, revela o móvel, agora restaurado, onde Benedito pôs em papel pautado boa parte de suas obras. A escrivaninha era o xodó de um autor cujo nome não é tão familiar do grande público. “Acho que ele é muito pouco conhecido. Pela importância que teve em seu tempo, pela qualidade de seu trabalho, ele deveria ser mais lembrado”, opina Ana Cláudia. No filme, o premiado poema A Caraíba é declamado pela atriz Glória Pires, que se encantou pelos versos logo que os viu.
Foi Ana Cláudia a responsável por motivar a família a abraçar o projeto de resgatar a importância de seu pai para a cultura goiana. Falou com os irmãos – entre eles, os jornalistas Hélio Rocha, Reinaldo Rocha e Eduardo Rocha – e passou a catalogar o que havia na antiga casa da família, uma construção com mais de 60 anos de idade situada na Rua 72, no Centro de Goiânia. “Eu comecei a reunir papéis que estavam em um quarto onde antes era o escritório dele”, conta Maria Rocha, a única filha de Benedito que ainda mora no antigo imóvel. Ela e Ana Cláudia passaram a, literalmente, garimpar entre arquivos não muito organizados e documentos frágeis pela idade os textos em que o pai tanto burilava em sua velha escrivaninha até altas horas da noite, precisando que a esposa, Ana Vale Rocha, o chamasse para dormir.
O livro
Planejar a edição de Memórias de Rocha – Vida e Obra de Benedito Odilon Rocha não foi uma tarefa fácil ou breve. Ainda em 2015, Ana Cláudia Rocha, filha do homenageado, começou a se empenhar nessa tarefa, que incluiu paciência, surpresas e alguma resistência a ácaros. “Além de toda a documentação que conseguimos aqui, veio muito mais de Corumbá. Alguns desses materiais estavam se deteriorando. Eu, minha irmã e meus filhos fizemos um grande esforço para digitalizar tudo e até digitar as obras que estavam em papéis que se desmanchavam”, relata.
Ao mesmo tempo em que reunia o conteúdo, Ana buscava viabilizar financeiramente o livro. Primeiro fez um projeto, mas essa proposta não contemplava uma antologia completa dos trabalhos de seu pai. “Isso não estava me agradando. Eu queria mais”, confessa. Ela também buscou auxílio em instituições, como a PUC Goiás, para ajudá-la a editar a obra, mas não foi atendida. Ana chegou a inscrever o projeto na Lei Goyazes, do governo de Goiás, mas um detalhes técnico – a falta de paginação em parte da proposta – impediu sua aprovação.
“Por fim, eu resolvi, ao lado dos familiares, colher ajuda com amigos, empresários e admiradores de meu pai para conseguir publicar o livro. Foi assim que deu certo”, afirma. Toda a edição ficou a seu cargo e o volume é resultado de muitas colaborações. Artistas plásticos goianos, como Omar Souto , Roos e Rossana Jardim cederam ou fizeram obras exclusivas para ilustrar os poemas de Benedito. A capa foi elaborada por Amaury Menezes, um belo retrato em aquarela do escritor. “Ficou do jeito que a gente queria”, comemora Ana Cláudia.
Ali também ficava sua antiga biblioteca, estantes e mais estantes de livros que mostravam seu amor pelos livros, algo que herdou de seu pai, que conduziu a primeira loja que vendeu obras literárias na histórica Corumbá de Goiás. Foi nesse armarinho transformado em livraria que o patriarca da família morreu após uma queda, o que quase interrompeu os estudos que o jovem Benedito Rocha fazia no antigo Ginásio Anchieta, de Silvânia (então chamada Bonfim), sob os auspícios de padres rigorosos, como o arcebispo Dom Emmanuel, de quem foi próximo. Após esta fase, Benedito voltou para Corumbá, onde começou sua família e fez carreira política. Chegou a ser eleito prefeito e queria construir um Mercado Municipal, antigo anseio dos moradores.
“Meu pai, porém, não se adaptou à política. Ele não quis se envolver com certas pressões que existem nesse meio. Começou a ser perseguido por forças políticas de oposição. Preferiu renunciar e deixar Corumbá, vindo com toda a família, em uma viagem longa e desgastante, para Goiânia”, relata Ana Cláudia. A jornada se deu em 1950 e naquele tempo teve características épicas. Estradas sem ponte, carros de boi no lugar de automóveis, meninos pequenos para olhar. No final, a família Rocha chegou ao Bairro Popular. Só depois de alguns anos construíram a casa no Centro. Logo Benedito entrou para o serviço público.
Sua veia artística, porém, não cessava. “Ele mantinha um diário e nele havia anotações desde os anos 1940. A viagem para Goiânia, por exemplo, está toda descrita lá. Ele usava cadernos para escrever crônicas, contos, poemas”, enumera Ana Cláudia. Clarinetista e saxofonista, Benedito Rocha também compunha. Muitas das partituras de sua lavra foram resgatadas e também estão no livro que revisita sua obra. São marchas, hinos, galopes. Algumas dessas composições são tocadas até hoje nas celebrações das Cavalhadas de Corumbá de Goiás e Pirenópolis. No seu centenário, a Corporação Musical 13 de Maio, de Corumbá, banda que tem 126 anos de existência e que Benedito integrou em sua juventude, chegando a fazer as vezes de maestro, executou vários desses trabalhos.
O homem que começou a escrever ainda na adolescência – primeiramente em pequenos textos no jornal estudantil A Voz Juvenil, em Silvânia, depois colaborando no jornal O Anápolis e por fim como um dos principais nomes da revista Oeste – foi um homem inquieto durante toda a vida. Já com os filhos crescidos, ele voltou aos estudos e se formou em Direito pela UFG. A universidade não lhe era um ambiente estranho. Como secretário, participou ativamente da criação da Faculdade de Filosofia que, posteriormente, resultaria na fundação da Universidade Católica de Goiás, hoje PUC Goiás.
Como se vê, a vida e a produção de Benedito Rocha dariam um livro, um filme. E deram. Com isso, temos a chance de conhecer uma personalidade não tão conhecida, mas que exerceu uma marca relevante em muitas áreas, sobretudo culturais, no Estado de décadas atrás.
Benedito e seus amigos
Havia uma inspiração especial naquela Corumbá de Goiás de cem anos atrás. Naquele tempo, muitos mestres resolveram nascer no mesmo lugar, na mesma época. Crianças que nasceram em datas próximas, que brincaram juntas entre o casario antigo, que tomaram o gosto pela escrita, que tornaram-se referência na vida adulta. Benedito Rocha integrou uma trinca rara. Em 1915, vieram ao mundo Bernardo Élis e José J. Veiga, não aparentados no estilo literário, mas sim nos vínculos sanguíneos. No ano seguinte nasceu Benedito Rocha, que viria a ser amigo próximo dos outros dois e que teria em um dos irmãos de José J. Veiga como seu próprio irmão de criação.
O primeiro livro de Benedito Rocha ganhou uma apresentação afetiva de José J. Veiga, que chamava o amigo de poeta de grande delicadeza. Quando Benedito tomou posse na Academia Goiana de Letras, na primeira fila estava Bernardo Élis, prestigiando seu companheiro de infância. O homem que ganha agora um livro póstumo em sua homenagem não teve a mesma expressão pública dos dois amigos, o que era lamentado por eles. Bernardo tornou-se o único goiano a ingressar na Academia Brasileira de Letras e foi premiado três vezes com o Prêmio Jabuti por suas obras. José J. Veiga virou emblema do realismo mágico no Brasil. Benedito preferiu não sair de Goiás e escrever quase que só para si.
Rogerio, quanta precisão. Que texto lindo. Como você consegue captar a essência. Um jornalismo puro. Muita gratidão.