Em 2003 o presidente francês Jacques Chirac (1995-2007) solicitou ao ministro da Educação, o filósofo Luc Ferry, para participar do Fórum Social Mundial contra a globalização, em Porto Alegre (RS). Interessava a ambos compreender o que pensavam e tramavam os antiglobalistas de todas as tendências. De volta a Paris, Ferry reuniu-se com o presidente no Palácio Élyseé para narrar suas observações sobre o encontro.
A primeira delas foi a óbvia constatação de que as pessoas que foram a Porto Alegre não eram aliadas políticas de Chirac. A segunda, que elas apontavam um fenômeno bem real, embora, na opinião de Ferry, o compreendessem mal: “a desapropriação democrática, o fato de que o mundo nos escapa, que seu desenvolvimento se torna estruturalmente errático e incontrolável.”
Depois de ouvir o relato, o presidente Chirac respondeu: “Sim, certamente, eles se enganam na explicação, mas acertam no sentido, quer dizer, no fato de que o mundo nos escapa, na ‘desapropriação’. Há 30 anos depois de um jantar para seis ou sete ministros ou chefes de Estado interessados no assunto, podia-se, entre a pera e o queijo, firmar um acordo fixando o preço do cacau, do açúcar ou da banana. Apertavam-se as mãos e pronto. Hoje, são os mercados financeiros que o fazem e ninguém controla mais.”
“Esquecemos o amor, a amizade, os sentimentos, o trabalho bem feito. O que se consome, o que se compra, são apenas sedativos morais que tranquilizam seus escrúpulos éticos Zygmunt Bauman”
O interesse dos dois franceses consistia em entender esse mundo novo, daí a curiosidade de ambos pelo movimento antiglobalizante. As palavras de Chirac levaram Ferry à seguinte reflexão: “Por trás dos mercados financeiros não existe piloto. São realmente os ‘processos sem sujeito’”, disse, usando uma expressão que tomou emprestado do filósofo marxista Louis Althusser (1918-1990).
Ferry narra esse episódio no livro A Revolução do Amor – Por Uma Espiritualidade Laica (Editora Objetiva), dedicado à compreensão da “segunda globalização”, que, de acordo como a entende, ocorreu na segunda metade do século 20 e “modificou profundamente todo o sentido de nossa relação com a política e com a história.”
“Foi uma catástrofe arrastar a classe média à precariedade. O conflito não é mais entre classes, é de cada um com a sociedade Zygmunt Bauman ”
Independentemente das discordâncias entre os antiglobalizantes que frequentam os Fóruns Sociais Mundiais e esses dois franceses sobre causas e efeitos da globalização, Ferry identificou um ponto em comum entre eles: o interesse em compreender esse novo mundo, tema que domina as reflexões e produções literárias de vários pensadores da atualidade.
Uma das vozes mais críticas da sociedade contemporânea foi a do filósofo polonês radicado na Inglaterra Zygmunt Bauman, que morreu aos 91 anos em Leeds, cidade inglesa onde vivia com a família. Sua vasta produção literária começou em 1957, mas foi com a criação do conceito de “modernidade líquida”, em livro homônimo publicado em 2000, que ele construiu sua crítica mais sólida ao individualismo e à desigualdade que marcam a sociedade atual.
“As desigualdades sempre existiram, mas de vários séculos para cá se acreditou que a educação podia restabelecer a igualdade de oportunidades. Agora, 51% dos jovens diplomados estão desempregados e aqueles que têm trabalho têm empregos muito abaixo das suas qualificações. As grandes mudanças na história nunca vieram dos pobres, mas da frustração das pessoas com grandes expectativas que nunca se cumpriram Zygmunt Bauman”
A “modernidade líquida” surge em contraposição à modernidade sólida, entendendo esta como a modernidade propriamente dita, da época da Guerra Fria e das guerras mundiais. A sociedade líquida não pensa a longo prazo, ao alcance de um objetivo ou, melhor dizendo, de uma utopia. A partir dessa obra seminal, o sociólogo escreveu Amor Líquido (2003), Vida Líquida (2005), Medo Líquido (2006), Tempos Líquidos e Vida para o Consumo (2007), 44 Cartas do Mundo Líquido e Moderno (2011), A Cultura do Mundo Líquido Moderno (2013) entre outros.
Babel – Entre a Incerteza e a Esperança (Editora Zahar), de 2016, foi seu último livro lançado no Brasil. Trata-se de um diálogo entre ele e o escritor e jornalista italiano Ezio Mauro e reúne muitas das reflexões de Bauman sobre a política e a democracia. Seus diagnósticos provocam no leitor brasileiro a sensação de familiaridade, dando até a ilusão de que ele analisa especificamente a atual crise política nacional.
“O que está acontecendo agora, o que podemos chamar de crise da democracia, é o colapso da confiança. A crença de que os líderes não só são corruptos ou estúpidos, mas também incapazes Zygmunt Bauman ”
Isso ocorre porque nossa crise não surgiu da bilionária corrupção descoberta pela Lava Jato, para desgosto de vaidosos procuradores, policiais federais e juízes que se sentem salvadores do Estado e fundadores de um novo país. A corrupção, tão antiga quanto a criação do Estado-nação, é apenas um sintoma de uma, digamos, doença da democracia, que é mundial. Não por outro motivo, a volta dos protestos de massa no Brasil foi em 2013, um ano antes do início da Operação Lava Jato.
O que estamos assistindo é que as instituições da democracia não são suficientes no mundo de hoje. “A democracia não é autossuficiente” e por isso “governos democráticos são instáveis, porque tudo está fora de controle”, como afirma Ezio Mauro no diálogo com Bauman.
“O poder se globalizou, mas as políticas são tão locais quanto antes. A política tem as mãos cortadas. As pessoas já não acreditam no sistema democrático porque ele não cumpre suas promessas Zygmunt Bauman ”
A crise parece sem fim no Brasil porque ela é “autônoma”, pois os processos ocorrem “sem sujeito”. Novamente é Ezio quem afirma: “É como se agora, sem as ideologias que felizmente enterramos e deixamos para trás, nós já não fôssemos capazes de examinar em conjunto nossos corações e cuidar do que está à frente. No momento em que tudo aquilo que nos ajudou a criar este ‘juntos’ desabou – os partidos, a grande cultura política, os modos de expressão –, o espaço para o debate e a reflexão encolheu subitamente, e o discurso público e vigente se atrofiou”.
Como não reconhecer esse diagnóstico no cenário político atual? A credibilidade nos políticos chegou a seu índice mais baixo; a fé nas condições dos governos de resolverem as graves crises sociais e econômicas do País desabou; a imagem dos partidos políticos não vale uma moeda de 1 real; as instituições públicas, em especial o tripé Executivo/Legislativo/Judiciário, que deveriam ser o sustentáculo do Estado de direito, revelam-se instáveis. Em outras palavras, “a democracia está sob ataque”.
“A catástrofe que veio, o colapso social [com a crise de crédito bancário em 2008 nos Estados Unidos], foi para a classe média, que foi arrastada rapidamente ao que chamamos de precariat [termo que substitui, ao mesmo tempo, proletariado e classe média] Zygmunt Bauman”
Para piorar, a maioria dos cidadãos já não mais acredita, observa Bauman, “na perspectiva de mudar o curso dos acontecimentos na direção certa”. Para o sociólogo houve uma interrupção da troca entre o cidadão, que sacrificou cotas de sua liberdade, e o Estado, que lhe oferecia cotas crescentes de segurança. Essa troca, característica da modernidade, foi interrompida, segundo Bauman, porque o Estado não tem interesse nas cotas do cidadão, “pois a bolsa de valores do poder faz seus acertos alhures, nos espaços impessoais dos fluxos financeiros”.
Novamente, como não perceber que os acertos políticos no Brasil deixaram de ocorrer nos espaços públicos, de interesse do conjunto da sociedade, e passaram a acontecer nos palcos escuros do mundo dos negócios? A sociedade brasileira enxerga com clareza que perdeu o lugar no centro do palco político, se é que algum dia esteve nele, e se transformou em mera expectadora desse jogo de negócios.
“Precisamente porque não tem líderes o movimento pode sobreviver. Mas precisamente porque não tem líderes não podem transformar sua unidade em uma ação prática [sobre os movimentos populares de protestos que surgiram em todo o mundo neste início de século] Zygmunt Bauman”
Nesta nova realidade, o cidadão deixou de ser cidadão para ser mero consumidor, inclusive da política, de acordo com o pensamento do sociólogo. Também neste campo, concordam os dois autores, os cidadãos viraram meros espectadores, com direito apenas a vaiar o espetáculo político. O público acomodou-se ao “ativismo de sofá” feito por meio das redes sociais, que Bauman até considera úteis, mas também uma armadilha.
Daí surgem as bases da atual “rejeição à política” ou o discurso do “antipolítico” que elegeu João Dória prefeito de São Paulo, Donald Trump presidente dos Estados Unidos, e fez vencer o Brexit na Inglaterra. Para os autores de Babel, o Estado sabe que o cidadão está estatisticamente presente, mas que ele só conta como um indivíduo, já que o “juntos” desmoronou-se, assim como “o conceito de público”. “Tempos de desesperança são repletos de tumbas de profetas desonestos e falsos salvadores da pátria.”
“Tento tanto quanto possível aderir ao princípio estratégico de Camus (…): ‘Eu me rebelo, logo nós existimos’ Zygmunt Bauman ”
Com o Estado incapaz de dar a contrapartida aos cidadãos, Bauman afirma que “estamos no começo de um processo de passagem, nem mais curto nem menos tortuoso que a passagem das comunidades locais para a ‘comunidade não imaginada’ dos Estados-nação”.
Reconhecido como pessimista, Bauman se pergunta em Babel se há alguma perspectiva de um movimento de massa em defesa da democracia “doente e vulnerável”. Conclui que, no momento, “os sintomas não são animadores”. Opinião compartilhada por Ezio Mauro, para quem “carecemos de política”. “Os movimentos espontâneos que testemunhamos também estão longe de ser neutros, pois funcionam rompendo o que não podem restaurar.”
“Tempos de desesperança são repletos de tumbas de profetas desonestos e falsos salvadores da pátria Zygmunt Bauman ”
Bauman nos deixou nesse momento de rupturas e de incertezas sobre o futuro, sobre o que virá (e se virá). Mesmo admitindo ser um “pessimista do presente”, afirmou que o que nos mantém vivos e atuantes (“em oposição à capitulação”) “é a imortalidade da esperança”. Ele se foi, mas esta continua imortal para nos ajudar a encontrar uma passagem desta “modernidade líquida”.
Os políticos acham que podem fazer o que querem. Usar e abusar do erário público, e devem continuar impunes em nome da democracia. isso faz com que até algumas pessoas, como vimos em algumas manifestações, gritem por golpe militar. Na verdade, tenho certeza que não querem isso. Mas qualquer coisa seria melhor do que temos no governo. O problema maior é que fomos nós que colocamos eles onde estão. E analisando apenas um pouquinho, chega-se a conclusão que povo não sabe votar. E isso em lugar nenhum do mundo. Senão, vejamos:
– Na Inglaterra, o povo votou a favor do brexit, quando tudo apontava o contrário.
– Na Colombia, o povo votou contra o tratado de paz.
– Nos Estados Unidos, elegeram um cara meio maluco.
Eu acho que o Pelé quem estava certo. Ele só errou na proporção. Não é o brasileiro. O mundo todo não sabe votar.
As coisas podem melhorar, quando colocarem, por exemplo, na constituição brasileira, referente ao governo federal, que um governo pudesse ser impedido NÃO só após cometer crime de responsabilidade. Mas que o governo pudesse ser avaliado também por competência.
O candidato deveria apresentar o plano de governo, informando o que seria feito no primeiro ano, no segundo, etc. E que o plano fosse NÃO uma promessa, mas um COMPROMISSO.
As metas que que NÃO fossem cumpridas, poderia levar a uma consulta popular, através de um plebiscito e aí sim. Seria lindo!
O povo que colocou, também tiraria aquele presidente incompetente.
Apesar do enfoque na desesperança, a articulista, por meio de frases dos filósofos, nos leva a uma reflexão que devemos sair do “ativismo do sofá”. A democracia sobreviverá?
E o nobre jornalismo, onde se encaixa em tudo isso que foi dito?
Sobre a globalização: da mesma forma que assistimos a grandes movimentos em favor de tal tendência, também há inúmeros movimentos em favor da cultura local, popular, de resgate de valores muito particulares. Ou seja, de qual globalização estamos falando?