No começo dos anos 50 o futebol era o grande acontecimento dos finais de semana em Dolearina, um distrito que fica pertinho da cidade de Estrela do Sul, em Minas Gerais. O campo de terra usado pelos moradores tinha começado a ficar famoso na região. Tudo porque um time formado somente por irmãos e primos começou a ganhar de todo mundo. No ruralão de domingo, de Araxá até Ituiutaba, não tinha pra mais ninguém, só dava os Lemos. O time era formado pelos filhos de Fiico. Eram 17 no total, entre moços e moças. Os meninos eram 11. Número sugestivo para montar um time de futebol, não é? Enquanto eles jogavam, elas torciam. E assim foi. A ideia não partiu de Fiico, que não ligava muito pra jogo de bola, mas do irmão, Glessides. Logo, ele começou a treinar os sobrinhos. Pra completar o banco, ainda faltavam outros interessados.
A melhor solução era caseira mesmo e chamaram os primos, que também eram apaixonados por futebol. Um deles era Odilon, um jovem de pernas grossas, atarracado e forte. O olhar esbugalhado assustava qualquer atacante que parasse à sua frente. Isso mesmo, Odilon era um zagueiro. E dos brutos. E se uma coisa o futebol profissional tem em comum com o da roça é a necessidade de ter pelo menos um sujeito bruto por ali. O outro primo era Celso. Esse era alto, magro e sério. “Celsim vai catar”, disse o astuto Glessides. Celsim, que tava mais pra Celsão, fechava mesmo o gol com toda a concentração e foco. Se fosse hoje, poderia ser palestrante. Um desses que ensinam as pessoas a prestar atenção nas coisas. No caso dele, a coisa era a bola de futebol.
A fama dos Lemos chegou a Uberlândia. A cidade já contava com um time profissional, que tinha estádio próprio e dividia os campos até mesmo com as equipes de Belo Horizonte. Não se sabe o motivo, mas algum dirigente ou alguém do Uberlândia Esporte Clube (UEC) teve a ideia de chamar os Lemos para um jogo. Assim que Glessides recebeu o convite, avisou: o primeiro jogo é em Dolearina, o outro nós pagamos em Uberlândia. O UEC aceitou.
Era um domingo ensolarado, quer dizer, muito ensolarado em Dolearina. As moças chegavam com suas sombrinhas. A meninada aquecia ainda mais o terrão brincando de bola. Enquanto isso, os jogadores do UEC foram bem recebidos, agraciados por um belo almoço com direito a muita carne de porco e uma tachada de doce de leite com queijo na sobremesa. Tanto afago e importância dada aos visitantes ajudou a deixar o time de Uberlândia com um certo ar pedante. A moçada dos Lemos já conhecia cada pedaço do terrão e sabia onde havia um buraco, um toquinho serelepe por ali. E, além disso, eles estavam muito acostumados com aquele sol que queimava a nuca na lida diária da roça.
A bola rolou e não se sabe se foi a displicência dos visitantes ou se foi o sol forte. Mas, logo no início, os Lemos, que jogavam agora ostentando o nome do distrito de Dolearina, dominavam a disputa. Um nome se destacou: Ormindo. O canhotinho filho de Fiico tava com o diabo no corpo. Glessides ordenou que todas as bolas do time tinham que parar nos pés dele. Quando o UEC abriu o olho, duplicou a marcação, triplicou em cima do canhotinho. Como também ele não era o Garrincha, começou a aprontar menos. Mas aí era tarde. O placar já tava 3 x 0. Três de Ormindo. Os Lemos ainda fizeram mais um gol com Tate, que era apelido, se chamava Sebastião. E o UEC fez o golzinho de honra. 4 x 1 e o povo comentava que o time da roça era impossível mesmo.
Em Uberlândia justificavam que o time não jogou pra valer. Que havia clima de festa e que na volta, aí sim, os Lemos levariam, certamente, um vareio. Em Dolearina, a vida dos Lemos continuou a mesma. Acordar cedo, trabalhar na roça, dormir cedo. Por isso mesmo, um recado vindo de Uberlândia estranhou e incomodou demais a Glessides. O UEC queria fazer o jogo da volta à noite. Era uma partida para inaugurar o sistema de refletores do Estádio Juca Ribeiro. “Não jogamos”, respondeu Glessides. O UEC retrucou, falando que seria uma festa bonita, que era uma honra ao pessoal de Dolearina participar. “Meus meninos não jogam à noite, eles trabalham o dia inteiro e à noite dormem, não jogam bola.” Glessides temia um time de Lemos sonolentos, sem toda aquela vibração, velocidade e, por que não dizer, virilidade.
Sendo assim o UEC arrumou outro jeito de inaugurar os refletores, com outros convidados. Anos mais tarde, aquele mesmo campo do Juca Ribeiro receberia o Santos de Pelé, o Botafogo de Garrincha e a seleção soviética do goleiro Yashin. O UEC ainda montaria grandes times, como o de 68, que meteu 4 x 0 no Atlético-MG, ou o dos anos 80, que foi campeão da Taça CBF, equivalente à Série B hoje.
Mas, naqueles idos dos anos 50, o UEC receberia os convidados lá de Dolearina. Um time de irmãos. E diferente do almoço gostoso que comeram quando visitaram o pequeno distrito, o time dos Lemos era indigesto pros uberlandenses. Não adiantou muito jogar com mais seriedade, desde o começo, no jogo de volta. Sob a luz do dia, os irmãos de Dolearina levaram pra roça um empate em 4 x 4.
Depois daquilo, foi natural alguns dos irmãos Lemos receberem convites para jogar no UEC ou em outros times da região. Mas nenhum quis deixar o trabalho no campo. Anos mais tarde, um caçulinha da família fez sucesso vestindo a camisa do próprio UEC, o adversário de outrora. O pequeno, que era muito novo pra ter participado daqueles dois jogos, cresceu, virou jogador e era chamado simplesmente de Lemos.
A sabedoria de Glessides em negar fazer o jogo da volta à noite certamente foi o que salvou os Lemos de uma derrota feia em Uberlândia. Eles eram homens do dia. E, afinal, eles eram filhos de Fiico, que tinha um lema de vida, passado de geração em geração na família dos Lemos: não pegue o sereno da noite, não perca o da madrugada, não discuta com ninguém, não faça misturada.
Historia ótima essa dos filhos de Fiico e o autor a trouxe em um texto singular.
Parabéns!
Ótima estória essa dos Lemos.