Quando li o romance Canoas e Marolas, fui tomado por uma grande implicância por seu autor, João Gilberto Noll. Achei o livro chato, lento, gratuito. O título integra a coleção Pecados Capitais, em que seis nomes de peso da literatura brasileira e um das letras argentinas criavam histórias que tinham como mote um dos sete pecados capitais. Coube a Noll o da Preguiça e eu me perguntava por que, em meio a trabalhos tão bons, “aquela bomba” tinha que aparecer. Li e desgostei. Não quis mais saber daquele escritor gaúcho do qual, em minha juventude, sequer ouvira falar.
Alguns anos depois, já trabalhando na cobertura de literatura do jornal O Popular, de Goiânia, chegou-me às mãos a nova obra de Noll e a pauta: leia e faça uma entrevista com ele. Mas por que, meu Deus, ouvir este cara? Simples: ele vinha ganhando todos os prêmios, incensado como um dos autores de maior prestígio de sua geração. Ok, vamos lá! Li Lorde e as marolas do passado transformaram-se em redemoinhos raivosos. A imagem que tinha de Noll metamorfoseou-se instantaneamente. O livro tinha ritmo único, sem abrir mão de um intimismo marcante. Um intimismo que também era uma espécie de personagem. Havia uma sombra que agia ali.
“Ao enveredar mais pela obra deste escritor que acaba de falecer aos 70 anos de idade, descobri um autor que primava seu ofício.”
Ao enveredar mais pela obra deste escritor que acaba de falecer aos 70 anos de idade, descobri um autor que primava seu ofício. Isso não quer dizer ser metódico a ponto de banir a criação e sim fazer com que a criação cresça a partir de seu rigor, ainda que negasse tal característica. Seus enredos, romances ou contos, nunca primaram pela verborragia. Era concisos e intensos. E falavam com frequência da solidão. A solidão daqueles que vivem sozinhos ou ao lado de quem não os compreende. Quando soube que Noll estava só quando morreu em sua casa, pensei nesse reflexo entre vida e ficção, nessa mágica que somos capazes de realizar quando desenhamos a nós mesmos em personagens que não existem materialmente.
A literatura de Noll não era habitada por alter egos, mas por sentimentos genuínos. Daí vinha sua força. Havia também a preocupação estética com cada linha, com cada construção narrativa que conferia a seus livros amplidões surgidas a partir do monótono, do prosaico, do viver diário. Este cotidiano prenhe de loucuras e hipérboles, repleto de alegorias de nós mesmos. Um de seus títulos se chamava Solidão Continental e acompanha um homem sem nome vagando por vários países, enfrentando a maldição de nunca encontrar um lugar para si. Em sua estreia, feita com sucesso nos anos 1980 com o livro de contos O Cego e A Dançarina, já há este atordoamento oriundo da certeza da inadaptabilidade, da hostilidade, da exclusão tão em evidência atualmente.
“A literatura de Noll não era habitada por alter egos, mas por sentimentos genuínos. Daí vinha sua força. Havia também a preocupação estética com cada linha, com cada construção narrativa que conferia a seus livros amplidões surgidas a partir do monótono, do prosaico, do viver diário.”
Quando entrevistei Noll por telefone pela primeira vez, esperava falar com um homem que ilustrasse um pouco de sua literatura um tanto atormentada. Preparei-me para fazer perguntas a um sujeito ressentido com sua vida meio ingrata. Os personagens sombrios não se coadunavam, porém, com o autor que os criara. Foi simpático em indefectível sotaque dos pampas. Um bom tempo depois, tive a chance de encontrá-lo pessoalmente. Pedi a entrevista e ela foi marcada num fim de tarde em uma pousada de Paraty, cidade histórica do sul fluminense. Na beira da piscina, sentado à uma mesa com livros, estava ele, pacientemente aguardando o repórter chegar. Cumprimentei um homem que exalava calma, que não tinha pressa. Estávamos na Festa Literária mais badalada do país e ele, Noll, era uma das estrelas. Mas não parecia.
Conversamos sobre seus livros, sobre o fazer literário, sobre sua imensa cultura. Professor convidado na Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, tradutor e ficcionista que ganhava o mundo com sua prosa, Noll não demonstrou, nem por um segundo sequer, algum ar de superioridade. Conversava olhando no olho, ria, concordava e discordava com tranquilidade. O papo durou quase uma hora. No fim, já estávamos falando de trivialidades, de Paraty, do mar que invadia a cidade para depois recuar de suas ruas de pedra. Tirei fotos de Noll para a matéria e nelas o autor de tantas solidões literárias aparecia sozinho. Sozinho se fez. Sozinho se foi. Coerente para um autor singular.
Entrevista / João Gilberto Noll
“A linguagem é muito poderosa”
Esta conversa ocorreu em 2008, nos jardins da Pousada da Marquesa, em Paraty (RJ), quando João Gilberto Noll estava lançando na Festa Literária da cidade o livro Acenos e Afagos. A entrevista, concedida com exclusividade, foi concedida a este repórter e publicada originalmente no caderno Magazine do jornal O Popular. ERMIRA reproduz aqui o papo deste encontro em que o autor fala de seu trabalho, de suas inspirações e se assume um “escritor difícil”.
Por Rogério Borges
Um dos elementos mais constantes de sua obra é a libido, que o senhor trabalha de forma muito intensa. Esse foi um caminho que descobriu desde o início de sua carreira ou que amadureceu no decorrer dos anos?
Isso é algo muito antigo. Desde o meu primeiro livro, O Cego e a Dançarina (contos), a libido é o meu foco central no testemunho dos personagens. Para mim, um sujeito que fez análise, acho que antes de se pensar na história e nos personagens, a questão básica da libido se expressa na língua portuguesa. Sem tesão não dá para fazer nada com a língua. Ainda mais para mim, que sou um escritor de linguagem. Não sou um escritor que sabe o que vai escrever. Eu sento e vem. Claro que há um momento em que sinto que peguei o bicho, que encontrei o tom. Aí eu vou até o fim da narrativa. Aí volto ao início para refazê-lo porque a linguagem inicial era alguma coisa para aquecer.
O senhor não tem um projeto de enredo antes de começar a escrever?
Não, não tenho. Não sei se você acha isso ou não, mas descobri quatro ou cinco livros atrás que meu protagonista é sempre o mesmo. Não que de um livro para outro haja uma continuidade. Em um livro ele é vagabundo, em outro é escritor, em outro é ator, mas a alma desse cara é a mesma.
O senhor tem um eu lírico na prosa?
Acho que sim.
Por isso essa linguagem tendendo mais para a poesia?
Exatamente. Acho que é por aí. A linguagem é muito poderosa.
Seus personagens parecem optar pela entrega, não reagem. O senhor acha que a sociedade está meio apática, em que as pessoas deixam-se levar pelos fatos?
Acho que sim. A inoperância é uma questão aguda em meus textos. Acho que isso vem também dos estudos que fiz do que é o romance. Eu lia muito Luckács, um teórico marxista, e ele falava do herói problemático, aquele cara que vive em uma sociedade com valores degradados e quer romper com ela, mas só tem sua solidão para apresentar. Uma procura alienada da recuperação social.
O senhor acredita em recuperação social?
Acho que cada vez menos. A perda da compaixão é muito gritante naquilo que eu faço. Há um certo desespero para recuperar a generosidade, a solidariedade, o companheirismo. Sem companheiros, o barco afunda.
Em seu novo livro, há uma cena em que dois garotos descobrem o sexo um com o outro de uma forma instintiva, animalesca. O senhor acha que a animalização dos gestos de afeto tem pautado a relação entre as pessoas?
Isso é uma coisa muito do masculino, do sexo ligado à brutalidade. Pelo menos faz parte da fantasia masculina. Da relação do sexo e da submissão. Nesse sentido, as relações humanas estariam mais “masculinas”. Mas também há um lado positivo nisso, como tudo. Isso provoca a possibilidade de abrir portas sexuais interessantes, de romper um pouco com os salamaleques da civilização. Acho que a leitura que você fez é válida. E esses dois serão os personagens centrais de Acenos e Afagos. Um deles é narrador. Depois desse dia, eles se afastam pela culpa que sentem. Depois se reencontram e reacendem aquela possibilidade do contato físico e um deles começa a se transformar em mulher. O que não é narrador é um cara extremamente fechado para a libido. Tem preconceito com a sexualidade entre dois homens. O que é narrador começa a se imolar para conseguir efetivar esse desejo e começa a se transformar em mulher.
Uma transformação mais alegórica ou mais literal?
No universo do romance é literal. Claro que não quis fazer um documentário sobre transsexualidade (risos). Mas no romance a mudança é para valer. Ele vai para a cozinha e começa a se encarnar em uma mulher bem tradicional. Esse que foi o durão sempre entra em uma crise de impotência sexual e o que se transforma em mulher começa a comê-lo (risos).
Voltando à animalização do sexo, boa parte dos crimes sexuais de hoje é cometida ou viabilizada pela Internet. Como o senhor avalia esse cenário?
Eu acho que houve essa abertura para o mal, com o qual não compartilho. Existe mesmo essa coisa do bestiário da libertação, a veicular o fetiche. O fetiche é você se distanciar do todo para partes do humano, como os órgãos infantis. Mas, apesar disso, eu adoro o poder do computador. Para trabalhar é uma maravilha.
O computador influenciou sua literatura?
Acho que sim porque eu resisti muito em usá-lo. Eu escrevia a mão. Enquanto eu passava para a máquina, ia fazendo os reparos. Agora é muito melhor.
A internet possibilitou uma maior proximidade entre o escritor e o leitor?
Não conseguiria fazer um livro on-line. Eu tenho pudor de mostrar uma coisa inconclusa, em progresso. Não mostro para ninguém. Só vou começar a mostrar depois que mando para a editora. Eu acho que há um prazer apresentar uma surpresa para o leitor. Quero que ele veja já pronto.
O senhor gosta de saber o que as pessoas estão achando de seu trabalho?
Claro, sim. Passa a haver uma atividade mental muito grande a partir do que as pessoas estão pensando, do que os críticos escrevem. Adoro esse diálogo. Gosto de ler trechos do meu livro em público. A minha literatura é muito oralizante. Eu estudei para ser cantor lírico e esse é meu canto hoje. Dos protagonistas, o que quero mostrar é a voz. Muito mais do que trama, enredo. Procuro evitar o eixo de causa e efeito. Quero mostrar o acaso que, na minha vida, é muito forte.
Quais são as vozes que o influenciam?
Clarice Lispector, Albert Camus, Henry Miller, por sua sexualidade avultada. E poetas como Drummond, Cecília Meirelles, T.S. Eliot. Esse, para mim, é um deus.
T.S. Eliot é considerado um autor difícil.
Eu gosto dos autores difíceis.
O senhor é um autor difícil?
Acho que bastante. Eu gostaria de deixar de ser para angariar mais leitores. A minha questão é a linguagem. Pegar esses aluviares enormes, que estão retratando a sede de instantaneidade das coisas. Quando eu faço essas frases muito longas é porque sou muito ansioso e quero dizer tudo ao mesmo tempo. … tudo emergencial.
Já que é um escritor difícil, qual o caminho para começar a lê-lo?
A minha ficção é autônoma. Ela não tem relação automática com a realidade. A voz que carrega é o mais importante. Pessoas incomodadas com a realidade.
O senhor está sempre incomodado com a realidade?
Estou fazendo uma terapia que tem me ajudado muito a deixar de ser perenemente incomodado. Eu escrevo sobre esse divórcio entre o homem e seu ambiente. Meu personagem gosta de caminhar assim como eu, de andar sem muito destino.
O escritor deve ir para a rua?
Acho que sim. Nunca fui um escritor de gabinete. O sopro de idéias vem da rua. Conversando, olhando. Eu olho demais. O olhar é outra coisa importante do meu texto.