(Curadoria de Luís Araújo Pereira)
[1]
ESTA IRENE não me deixa ouvir a sirene
vou-me pôr a ver passar a ambulância
se for carro dos bombeiros decerto
vermelho se for da
Polícia normalmente azul
levarei para o parapeito
o meu peito velho e virgem e a lata
das bolachas maria mas podia
em vez de octogenária e bulímica
ter alguns meses biquentos e usar babadoiro
ser talvez qual tímida donzela
pela miúda gelosia espreitando
feia no berço: bonita à janela não
não a avisto ainda apenas a sirene
e aquela abelhuda da Irene a cantar:
Minha mãe é pobrezinha
Não tem nada que me dar
Dá-me beijos, coitadinha…!
e eu que queria ouvir bem a sirene
e ver o incêndio o assalto a estropiada o estupro
rilharei bolachas maria
até ao fim deste dia
e do outro?
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[2]
A MINHA MUSA antes de ser
a minha Musa avisou-me
cantaste sem saber
que cantar custa uma língua
agora vou-te cortar a língua
para aprenderes a cantar
a minha Musa é cruel
mas eu não conheço outra
̻ ̻ ̻
[3]
No more tears
Quantas vezes me fechei para chorar
na casa de banho da casa da minha avó
lavava os olhos com shampoo
e chorava
chorava por causa do shampoo
depois acabaram os shampoos
que faziam arder os olhos
no more tears disse Johnson & Johnson
as mães são filhas das filhas
e as filhas são mães das mães
uma mãe lava a cabeça da outra
e todas têm cabelos de crianças loiras
para chorar não podemos usar mais shampoo
e eu gostava de chorar a fio
e chorava
sem um desgosto sem uma dor sem um lenço
sem uma lágrima
fechada à chave na casa de banho
da casa da minha avó
onde além de mim só estava eu
também me fechava no guarda-vestidos grande
mas um guarda-vestidos não se pode fechar por dentro
nunca ninguém viu um vestido a chorar
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[4]
Prêmios e comentários
A avó Zé e a tia Paulina
deram-me os parabéns
e disseram
agora já é uma senhora!
a Maria disse
parabéns por quê?
é uma porcaria!
quanto a comentários
a poesia e a menarca
são parecidas
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Em 72 recebi
o prémio literário
dos pensos rápidos Band-Aid
o prémio foi uma bicicleta
às vezes penso
que me deram uma bicicleta
para eu cair
e ter de comprar pensos rápidos
Band-Aid
é o que penso dos prémios literários
em geral
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[5]
NÃO GOSTO tanto
de livros
como Mallarmé
parece que gostava
eu não sou um livro
e quando me dizem
gosto muito dos seus livros
gostava de poder dizer
como o poeta Cesariny
olha
eu gostava
é que tu gostasses de mim
os livros não são feitos
de carne e osso
e quando tenho
vontade de chorar
abrir um livro
não me chega
preciso de um abraço
mas graças a Deus
o mundo não é um livro
e o acaso não existe
no entanto gosto muito
de livros
e acredito na Ressurreição
de livros
e acredito que no Céu
haja bibliotecas
e se possa ler e escrever
Perfil
Adília Lopes é o pseudônimo de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira. Nasceu em Lisboa no dia 20 de abril de 1960. Estudou Ciências Documentais na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É poetisa, cronista e tradutora. Publicou os seguintes livros: Um Jogo Bastante Perigoso (1985), A Pão e Água de Colônia (1987), O Marquês de Chamilly (1987), O Decote da Dama de Espadas (1988), Os 5 Livros de Versos Salvaram o Tio (1991), O Peixe na Água (1993), A Continuação do Fim do Mundo (1995), A Bela Acordada (1997), Clube da Poetisa Morta (1997), O Poeta de Pondichéry seguido de Maria Cristina Martins (1998), Sete Rios entre Campos (1999), Florbela Espanca Espanca (1999), O Regresso de Chamilly (2000), Irmã Barata, Irmã Batata (2000), A Obra (2000), A Mulher-a-Dias (2002), César a César (2003), Poemas Novos (2004), Caras Baratas (2004), Le Vrai la Nuit ̶ A Árvore Cortada (2006), Caderno (2007), A Dobra (2009), Apanhar Ar (2010), Andar a Pé (2013), Manhã (2015), Bandolim (2016). Em posfácio ao livro Antologia (7 Letras, Cosac & Naify, 2002), Flora Sussekind, em análise bem encorpada, considera que autora recorre à ficcionalização ̶ com referência a contos tradicionais ̶ , a curtas microbiografias, a autobiografias, a citações, a personagens reais ou não, a recursos rítmicos, a duplicações etc., assinalando evidentemente a complexidade desses processos na elaboração de sua tessitura poética. Como autora de prestígio, de riqueza formal e imagética, Adília Lopes concentra o seu interesse no cotidiano e na sua sociedade, tratando os assuntos com humor e ironia, elevando-os a um alto grau de expressão estilística. Ao lado desses pormenores sutis e bem conduzidos, sua poesia tem marca de religiosidade e dicção bem próxima da linguagem coloquial.