“Toda crítica viva – isto é, que empenha a personalidade do crítico e intervém na sensibilidade do leitor – parte de uma impressão para se chegar a um juízo.” Nas primeiras páginas do clássico Formação da Literatura Brasileira, lançado no final dos anos 1950, Antonio Candido, então um professor do interior paulista com seus 30 e poucos anos, mostrou alguns de seus predicados ilustrados pela citação acima. Surgia ali um crítico corajoso – “o fato de ser este um livro de história literária implica a convicção de que o ponto de vista histórico é um dos modos legítimos de estudar literatura” –; provocador – ao referir-se ao romântico Junqueira Freire, ele o chama de “poeta raso, de asas curtas” –; culto – a impressão que se tem é que havia lido tudo publicado até então.
Aquele cartão de visitas não era apenas uma bela estreia no circuito da grande crítica literária brasileira em uma época em que isso existia e era cultivada com esmero nas universidades, nas editoras, na imprensa. Candido começava ali, fiel ao seu conceito de “formação”, uma trajetória paciente e brilhantemente construída. “Perceber, compreender, julgar”, recomendava o professor ao descrever seu método de análise de obras literárias. Para ele, tudo estava no texto e a obra revelava muito mais do que se poderia imaginar à primeira vista, à primeira leitura. Sua arqueologia, o que trazia consigo em seus genes, tinha uma identidade que exigia ser descoberta.
““Perceber, compreender, julgar”, recomendava o professor ao descrever seu método de análise de obras literárias. Para ele, tudo estava no texto e a obra revelava muito mais do que se poderia imaginar à primeira vista, à primeira leitura.”
Com esse método, que mesclava história e sociologia, que contextualizava e interpretava, Candido inaugurou um outro patamar para a crítica literária brasileira. Dela se beneficiaram autores contemporâneos, que ganharam análises profundas, e escritores do passado, recolocados em lugares mais justos em nosso cânone. Uma das características marcantes de Candido era saber concatenar escolas literárias e mostrar que as classificações que aprendemos na escola – Arcadismo, Simbolismo, Romantismo, Realismo – integravam, na verdade, um único processo. Épocas e nomes se complementavam e formavam um panorama único, singular.
Interessante é que o rigor analítico de Candido superava qualquer tipo de ufanismo. Ele pontuava que a literatura brasileira, com seus movimentos, seu atraso em se formar em comparação com o Velho Mundo e até com vizinhos da América Latina, com suas idiossincrasias perfazia uma produção de nível irregular, mas que nos representava em muitos sentidos. Eis o pulo do gato deste crítico vanguardista. A literatura ganhava sua abordagem estética, mas não se resumia a ela. Autores consagrados como Gonçalves Dias, Fagundes Varela, José de Alencar juntavam-se a nomes hoje mais obscuros como José Gomes de Araújo, Silva Alvarenga e Vilela Barbosa para compor essa construção um tanto desigual, mas que se sustinha.
A partir daqueles agora longínquos anos 1950, Candido sedimentou um caminho que passou a ser referência. Publicando exponencialmente livros e artigos na grande imprensa – ele ajudou a moldar o suplemento literário do jornal O Estado de S. Paulo, que por muitos anos foi um dos mais influentes do País –, ele passou a ser reconhecido também por reflexões teóricas rigorosas apresentadas em linguagem absolutamente acessível. Isso criou uma tradição. Na USP e na UNESP, onde fez boa parte de sua carreira acadêmica, criou um neologismo e uma turma: os candianos. Muitos trilharam este rastro. Colegas, como Roberto Schwarz, e ex-pupilos, como Davi Arriguchi Jr. e Flora Sussekind, tinham no mestre Candido um espelho e uma meta.
“Eis o pulo do gato deste crítico vanguardista. A literatura ganhava sua abordagem estética, mas não se resumia a ela. Autores consagrados como Gonçalves Dias, Fagundes Varela, José de Alencar juntavam-se a nomes hoje mais obscuros como José Gomes de Araújo, Silva Alvarenga e Vilela Barbosa para compor essa construção um tanto desigual, mas que se sustinha.”
Obras do porte de Literatura e Sociedade, onde respondia convincente e quase que definitivamente se os aspectos sociais influíam sobremaneira na elaboração de uma obra de arte, e Os Parceiros do Rio Bonito, uma emocionante homenagem à figura do caipira e sua importância para nosso imaginário, fizeram de Candido um crítico também surpreendente. Se ele tinha faro para perceber que autores como Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Rubem Fonseca, em seus primeiros livros da carreira, eram geniais, seu olhar também alcançava sensibilidades menos cortejadas.
Em Um Funcionário da Monarquia, ele elabora um ensaio surpreendente a respeito de pessoas anônimas que tanto dizem de nós e de nossa literatura. Com Ficção e Confissão, Candido enveredava, abrindo picadas, pelo espinhoso terreno em que memória e criação se encontram a partir de Graciliano Ramos. Em Outros Escritos, Candido dedica artigos a autores como Carlos Drummond de Andrade e Oswald de Andrade, mas resume um legado que tornou-se bússola e advertência a todos: “A obra de menor qualidade também atua, e em geral um movimento literário é constituído por textos de qualidade modesta, formando no conjunto uma massa de significados que influi em nosso conhecimento e nos nossos sentimentos”.
““A obra de menor qualidade também atua, e em geral um movimento literário é constituído por textos de qualidade modesta, formando no conjunto uma massa de significados que influi em nosso conhecimento e nos nossos sentimentos”.”
Era com esse espírito aberto, sem preconceitos, sem estrabismos, sem prepotência, que Candido conduziu seu trabalho. Homem de convicções teóricas e políticas, nunca se curvou a modismos, jamais abandonou uma profundidade gentil. Até muito depois dos 90 anos de idade, manteve a vivacidade. Já era nonagenário quando seduziu o público com uma conferência que primou pela lucidez em uma edição da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). Nos últimos anos, o crítico levou seus textos para o selo Ouro Sobre Azul, que pertencia à sua filha, a designer Laura Escorel. Fez-se a vontade do autor: mais gente teve acesso à literatura – e à sua interpretação.
Que bom que tivemos Antonio Candido por tanto tempo, por quase 99 anos. Quase um século com seu otimismo, sua perspicácia e sua utopia.
Excelente texto sobre o crítico Antonio Candido, importante intelectual na formação de qualquer professor de literatura. Parabéns Rogério, pela homenagem a este estudioso da cultura nacional.