Entusiasmo sempre marcou a regência de Joaquim Jayme, nas últimas décadas à frente da Orquestra Sinfônica e do Coro Sinfônico de Goiânia. Era contagiante sua paixão pela música e pelo trabalho como maestro. Mesmo quando, já acometido por problemas de saúde, enfrentava dores no braço, cuja extensão era a batuta que tão bem movimentava naquele balé mágico ao qual correspondiam magníficos sons, ou precisava sentar-se diante dos músicos. Limitações físicas incapazes de conter a entrega do artista ao seu ofício.
Para a plateia sempre eclética, de crianças a idosos, de intelectuais a pessoas cujo encantamento se dava mesmo sem o respaldo das referências eruditas, não passava despercebida a intensidade imprimida pelo maestro ao espetáculo. Fosse ao ar livre, nos parques, praças e bairros, ou nos palcos dos teatros, ao final todos saíam com o sentimento de que estavam melhores, mais humanizados, gratos àquela doação generosa que reverberava nos corações tocados pela música.
Música, das criações humanas talvez a mais próxima da divindade, e esperança no ser humano, na sua capacidade de compreender, se aprimorar, viver em harmonia uns com os outros, fazer o bem. Assim me parece ter sido o estímulo maior para, apesar de todas as dificuldades, tropeços e carência de recursos, Joaquim ter persistido no cultivo da própria vocação e de muitos outros talentos, mestre que foi, o que resultava em educação e cultura levadas, didaticamente e com arte, a alunos, instrumentistas e público.
Muitas das apresentações contaram com convidados ilustres, virtuoses, que deram a honra de comparecer e reconhecem ter sido recompensados pela convivência com o maestro goiano, natural de Niquelândia, por acidente, como dizia, assumindo sentir-se mesmo de Pirenópolis, berço de seus antepassados. Joaquim Thomaz Jayme nasceu em 24 de fevereiro de 1941 e morreu na segunda-feira, 15 de maio de 2017. Um dia triste, de despedida, mas também de belas homenagens.
Uma delas feita pelo pianista Alvaro Siviero, em blog no Estadão, no qual relata como, nos idos de 2010, soube do “combativo” trabalho do maestro em Goiânia e fala do convite para vir fazer “um belo concerto”. O músico nos apresenta assim um resumo do currículo vasto de Joaquim:
Depoimento
“Seu primeiro instrumento foi o piano, estudando com Sebastian Benda e Pierre Lose. A seguir veio a regência e composição com Koellreuter e Miklós Kokrom. Sob orientação do maestro e compositor Cláudio Santoro estudou análise e fuga, regência orquestral, instrumentação e orquestração. A seguir embarcou para a Universidade de Rostock, Alemanha, onde concluiu seu mestrado em Musicologia e lecionou. Professor Adjunto do Departamento de Música da UnB, Professor Titular da Fundação das Artes de São Caetano do Sul, Professor Titular e Diretor da Escola Superior de Música da Universidade de Concepción, Chile. Fundador e Regente Titular do Coral do Estado de Goiás, bem como da Orquestra Filarmônica de Goiás, da qual foi regente titular. Foi Secretário da Cultura, Esporte e Turismo de Goiânia, bem como autor de diversas obras para piano, canto, orquestra de cordas, obras sinfônicas, dezenas de arranjos para coro e quase uma centena de canções populares e líricas com textos de poetas brasileiros e estrangeiros. Foi o fundador da Orquestra Sinfônica de Goiânia, da qual exerceu o papel de regente titular até a presente data. Sim, eu estava diante de um gigante.”
Álvaro Siviero, pianista
Acrescento que este gigante fundou também a Escola de Música do Centro Cultural Gustav Ritter e que começou seus estudos de piano com a irmã mais velha, Marilu, antes de ter aulas com Amélia Brandão Nery, a Tia Amélia (1897-1983), e com a também grandiosa Belkiss Spenzière Carneiro de Mendonça (1928-2005), em Goiânia, onde viviam desde os primeiros tempos da nova capital. Moderna, distante ainda dos avanços e problemas da metrópole atual, a cidade era reduto dos pioneiros que para ela se transferiram sem perder a força das raízes. Como no caso dos Jayme, família de muitas ramificações.
Ao adentrar a seara dos antepassados, tenho de explicar o parentesco com Joaquim (Jayme ou Jaime, descendemos do mesmo genearca). O pai dele, Oscar, era primo primeiro do meu avô, Jarbas, e ambos moraram em Goiânia nos anos 40 do século passado. Época de córregos e rios limpos onde se aventurava a meninada, que podia também andar solta pelas ruas e percorrer de bicicleta as avenidas centrais.
Oscar e Zita, pais de Joaquim, penúltimo entre nove filhos, moravam na Rua 5; Jarbas e Dailde, pais de Fábio, Eugênia e Celestina, moradores da Rua 24, Centro. Amizade antiga – Zita era afilhada de outra Eugênia, a mãe de Jarbas – que se fortaleceu e prosseguiu na convivência dos seus filhos. Datam dessa época algumas histórias engraçadas de Nega, apelido de Joaquim.
Menino danado esse Joaquim
Um dos relatos, feito pelo procurador de Justiça aposentado Fábio Dajar Jayme, 78 anos, revela como desde menino Joaquim apreciava boa comida, em qualidade e quantidade. Certa vez, narra Fábio, nas andanças pelo Centro de Goiânia, Nega encontrou pelo caminho uma marmita e sumiu. Os amigos ficaram intrigados, sem saber cadê ele, até que o surpreenderam saboreando a tal marmita muito bem camuflado no alto de uma árvore…
Os filhos de Zita e Oscar “eram muito custosos”, a julgar por essas histórias divertidas, como as que também conta Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado, 47 anos, pesquisador, professor, mestre em Letras e Linguística, mestre e doutor em Geografia.
Depoimento
“Meu avô Alcides Jayme, que era filho mais velho do Oscar de seu primeiro relacionamento, comentava que era bem mais velho do que os seus irmãos e podia ver a bagunça que faziam. O Joaquim, na brincadeira de boneca das irmãs, fingindo auxiliá-las, muitas vezes construía estradinhas para conduzir as bonecas, mas inventava acidentes para enfiar as pobres coitadas em represas de lama que fazia, lambuzando-as de barro. Dona Zita, no desespero com a meninada terrível, às vezes gritava com o Jesus (de Aquino Jayme, escritor, irmão de Joaquim) lá no alto da árvore, criando engraçados e chocantes paradoxos: ‘Jesus, desce daí capeta!’ ou ‘Jesus, diabo, desce menino!’ ‘Jesus, ôh trem do meio dos infernos!’”
Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado, pesquisador, professor e parente do maestro Joaquim Jayme
Nas reminiscências em três partes – as fases brasileira, chilena e europeia –, que escreveu pouco antes de ser acometido por um acidente vascular cerebral (AVC), em outubro do ano passado, Joaquim Jayme mesmo descreve-se como “endiabrado por natureza” e que foi para tentar controlá-lo que lhe impuseram cedo as lições de piano, que cobravam o sacrifício de afastar-se da algazarra das peladas jogadas na frente da sua casa.
“Minha vida nesse período era muito agradável, cheia de aventuras pelas matas e rios de Goiânia. Eu estudava no Grupo Escolar Modelo e lembro que, simplesmente não assistia às aulas. Preferia ir para o Lago das Rosas, uma maravilhosa piscina pública, e lá passava toda a manhã. Continuei com o mesmo costume no ginásio, aluno do Ateneu e do Liceu de Goiânia. Descobri desde cedo a maravilha que era fugir para dar uma ‘de ponta’ no Meia-Ponte.”
Esse e poucos outros trechos das reminiscências de Joaquim foram publicados no livro “Família Jaime/Jayme: Genealogia e História”, do mestre e doutor em Agronomia, genealogista Nilson Jaime (Goiânia: Kelps, 2016, 1.148 p.). Nilson explica que o material autobiográfico que o autor o encarregou de editar é suficiente para um pequeno livro, a ser publicado.
Exílio e amor
Nas memórias escritas por Joaquim, ficamos sabendo do seu engajamento político no início dos anos 1960, quando abandonou os cursos que fazia em Salvador, Bahia, e voltou a Goiânia para organizar viagem para a Alemanha, após ganhar bolsa de estudos. Acabou desistindo porque se encantou com as ideias comunistas às quais foi apresentado pelos irmãos Jesus e José (Gaúcho).
Em 1964, com o golpe militar e a ditadura, foi preso e depois exilado no Chile, onde fixou-se durante quatro anos e encontrou o amor que o acompanhou até o fim de sua vida, Mitzi Segovia Lopresti, mestre em História. Veio outro golpe de Estado, desta vez do general Pinochet, em 1973, e de novo foi perseguido e preso, conseguindo asilo político na Alemanha. O retorno ao Brasil só foi possível com a Lei da Anistia de 1979. Com o casal, o filho Oscar, que nasceu durante passagem pela Holanda.
Quem conviveu ao menos um pouco com Mitzi e Joaquim presenciou a devoção dela pelo marido que tanto admirava e sua determinação em promover a música dele, divulgar, apoiar, ampliar o alcance. Estava sempre presente aos concertos, era cuidadosa ao “monitorar” atividades físicas (por recomendação médica, ele fazia exercícios dentro da piscina, em certo período) e até a alimentação. Comungavam dos mesmos sonhos com um mundo de maior igualdade e justiça social. Oscar, o filho, lhes deu o neto Santiago, agora com 18 anos, com quem os avós também sempre se desdobraram em zelo.
Nas apresentações, o cuidado de Mitzi se manifestava desde a escolha das fotos para sites e jornais até nos cumprimentos ao término dos concertos. E os concertos foram muitos. A Sinfônica percorria os bairros de Goiânia nos eventos da prefeitura, como os mutirões, uma forma de levar boa música a grande número de pessoas. Joaquim sempre animado, conversando com o público, explicando generoso o repertório, a história dos compositores, inserindo peças de forte apelo popular, como a 5ª Sinfonia, de Beethoven, e o Bolero, de Ravel, em meio a tantos outros compositores que apreciava, como Tchaikovsky, Rachmaninov, Sibelius, Liszt, além de nomes contemporâneos.
No Teatro do Sesi, que deu apoio à orquestra, houve apresentações mensais. Para o mesmo espaço, o maestro propôs e executou durante cinco anos as Cantatas de Natal, na última delas, em 2015, dançando empolgado com gorro de Papai Noel, também usado pelos músicos.
Ao teatro, chegava cedo, preparava-se no camarim junto com os instrumentistas e começava o espetáculo pontualmente, apesar do costume brasileiro de atrasar no mínimo 15 minutos. Por causa disso, já estava no palco, regendo, enquanto boa parte do público ia chegando e procurando se acomodar em seus lugares, lembra a jornalista Valbene Bezerra, assessora de imprensa do Teatro do Sesi. “Perguntei a ele se isso não incomodava, porque não tínhamos como deter as pessoas que insistiam em entrar para assistir. Respondeu que não se importava, que se desligava do mundo quando começava a reger.”
Joaquim se despediu deste mundo cercado de reconhecimento, merecido, mas sobretudo do carinho e amor cativados, da música a que devotou a vida, com autenticidade e disciplina. Fica a lembrança da risada gostosa, da amizade, da alegria de exercer o dom com o qual foi abençoado e que tantos frutos rendeu. Música, maestro! Eternamente, música.
Um pouco do legado do maestro
– Dois CDs, Sinfonia das Águas Goianas e Alvorada na Serra, gravados com a Orquestra Sinfônica de Goiânia.
– CD Ricordanza, com 12 faixas de samba, bolero, forró, valsa e modinhas compostas e interpretadas por ele, com letras dos poetas Aidenor Aires, Jacy Siqueira e Leo Lynce (lançado em 2010).
– Autor do Hino do Estado de Goiás – com letra de José Mendonça Teles – oficializado pela Lei Estadual n° 13.907 de 21/09/2001.
– Autor do Hino oficial de Hidrolândia, Hino do Atlético Clube Goianiense, Hino da Uni-Anhanguera, Hino da Maçonaria Glória do Ocidente, dentre outros.
Karla Querida, você e sua forma especial de nos educar… Parabéns!
Muito tocante sua matéria, Karla.
Maestro Joaquim Jayme deixou muitas saudades.
Tive o prazer de jantar com ele poucos dias antes do AVC que o acometeu.
O jantar foi preparado por ele.
Contou algumas histórias do exílio e entregou-me suas memórias, para publicação.
Depois, só o vi no hospital, algumas vezes.
Saudades.
OláKarla, parabéns pela matéria. Gostaria de ter acesso ao acervo de composições do maestro Joaquim Jaime. É possivel?