Em Comeback, sua estreia na direção de um longa-metragem , o diretor goiano Érico Rassi elege o Centro-Oeste como cenário de um thriller de ação – o último filme protagonizado pelo ator paulista Nelson Xavier. A elogiada produção, que está sendo exibida em várias capitais do País, coloca em cena os últimos dias de um pistoleiro aposentado que vive na periferia de uma cidade do Planalto Central. O longa entra em cartaz neste 25 de maio em Goiânia, no Cine Cultura (Praça Cívica) e no Lumière Bougainville.
O longa-metragem, que foi rodado em Anápolis, com baixo orçamento, foi selecionado para a mostra brasileira competitiva do Festival do Rio do ano passado, dando continuidade a uma carreira de sucesso iniciada em 2003 com o irreverente e premiado curta-metragem Sexo com Objeto Inanimados. O cineasta já ganhou mais de 30 prêmios em festivais nacionais e internacionais, com obras como Doceiras do Brasil, seriado para TV (2016); Giramundo, outro seriado para TV (2016); Mostra Seu Mundo, também seriado televisivo; e os curtas Curta de Adeus (2010), Milímetros (2009) e Musculatura (2007), entre outros.
Radicado em São Paulo há alguns anos, Érico Rassi começou no cinema enquanto cursava a faculdade de publicidade, no começo dos anos 2000, produzindo curtas-metragens com os colegas, de uma forma bem experimental e sem muitos recursos. “Era a única forma viável naquele tempo. Na época, ainda não havia em Goiás um curso de cinema ou audiovisual, então quem se interessava pela área acabava trabalhando em produtoras de publicidade, como foi o meu caso”, recorda o diretor em entrevista ao Ermira Cultura.
“Depois de ter filmado os três primeiros curtas, senti a necessidade da mudança para São Paulo, principalmente para suprir uma lacuna teórica a qual eu não tinha acesso. Me parece que, com os cursos da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e do Instituto Federal de Goiás (IFG), e até mesmo com a própria produção local mais regular e a possibilidade de troca de informações entre os realizadores, isso hoje deixou de ser um problema”, observa Érico.
Hoje ele se divide entre Goiânia e São Paulo, produzindo em ambos de acordo com a demanda dos projetos. O cineasta dirige seu primeiro longa em sua cidade natal, Anápolis, com a história de um assassino que vive a amargura ao se aproximar do fim da própria vida. A seguir, trechos da entrevista.
Entrevista / Érico Rassi
“Nelson Xavier teve uma compreensão quase instantânea do personagem”
Como surgiu o projeto de Comeback, sua estreia na direção de longas?
Eu tinha vontade de falar sobre essa fase específica da vida, e tentar entender como algumas pessoas lidam com a velhice, a solidão e o abandono. Ao mesmo tempo, eu tinha começado a filmar um documentário sobre um jogador de sinuca chamado Carne Frita, que fez muito sucesso nas décadas de 1950 a 1970 mas acabou relegado ao ostracismo. O personagem do Amador foi uma espécie de derivação do Carne Frita e de muitos outros que entrevistei durante a pesquisa. Acabei optando pela figura de um ex-pistoleiro aposentado pelas possibilidades dramatúrgicas que o personagem me traria.
Como foi a escolha do elenco, em particular o trabalho com Nelson Xavier?
A gente sempre pensou no Nelson pro papel do Amador, mas havia a dúvida sobre se isso era viável – ele parecia grande demais para um projeto de tão baixo orçamento. Felizmente ele gostou muito do roteiro, e fez um esforço enorme pra poder ficar esses 40 dias em Anápolis, reajustando a agenda e intercalando com as filmagens de uma novela que ele estava fazendo ao mesmo tempo. Quanto ao trabalho do Nelson, a contribuição dele foi tão grande que eu o considero quase um co-autor do filme. Ele teve uma compreensão quase instantânea do personagem, de modo que a gente teve algumas conversas, algumas leituras e um ou outro ensaio, mas durante as filmagens praticamente não havia necessidade de ajustes – meu trabalho se resumia quase que a indicar suas marcações, onde estaria a câmera, qual o tamanho do plano. Várias coisas no trabalho com ele me impressionaram – sua generosidade, disponibilidade, a aversão a qualquer tipo de oba-oba e ao que não tinha a ver com o trabalho em si. Mas além disso, a maneira como ele compôs o Amador, de forma tão precisa, com gestos mínimos, e um olhar dele, muito particular, trazendo um pouco a empatia que ele sente por esses tipos mais precários e humildes. Qualquer ator razoável consegue ser verdadeiro vez ou outra, mas com ele a coisa acontecia em outra esfera, com essa impressão de um olhar, quase uma visão que ele tinha do Brasil e desses tipos.
No filme dá para perceber influências de westerns como Os Imperdoáveis e irmãos Cohen. Quais são suas principais referências?
Acho que por se tratar da trajetória desse personagem meio esquecido e em final de vida, fica mais fácil citar alguns westerns crepusculares, como Pistoleiros ao Entardecer, Meu Ódio Será sua Herança, O Homem Que Matou o Facínora, e talvez Os Imperdoáveis de forma mais direta. Mas isso apenas em relação ao tema, porque o filme é bem menos solene em relação ao gênero que esses que citei acima.
O cinema de gênero, principalmente o thriller de ação, tem espaço no cinema nacional?
Acho que especificamente em relação ao western há um potencial não explorado, que tem muito a ver com a ambientação geográfica, mas também com alguns rincões no interior do país onde lei e ordem ainda não parecem completamente estabelecidas. Especificamente em Goiás, nós até podemos dizer temos o nosso Monument Valley, que é a Chapada dos Veadeiros. O mais importante é que façamos filmes de gênero respeitando nossas características e especificidades, para não cair em cópias tacanhas de modelos externos.
Você acompanha a cena do audiovisual em Goiás? Acredita que finalmente o cinema tem chance de se desenvolver no Estado?
Quando eu comecei a filmar em Goiás, acho que em 2002, havia uma produção de cerca de quatro ou cinco curtas de ficção por ano, além de alguns documentários também de curta-metragem. Hoje eu sei de pelo menos cinco ou seis longas metragens já filmados ou em fase de produção, alguns inclusive lançados como o Tawego-Awa e o Comeback. Acho que é um número bastante razoável, e vários outros estão em desenvolvimento. Agora, nós dependemos e vamos continuar dependendo do incentivo público. Me preocupa um pouco essas interrupções que volta e meia acontecem em um processo que claramente tem dado certo, por questões políticas ou mesmo um certo desinteresse do estado em relação à produção cultural. Esse discurso parece chato e repetitivo, mas nem por isso deixa de ser verdadeiro.
Crítica
Terra sem lei
Nas ruas poeirentas de uma periferia abandonada pelo poder público e pela lei, o ex-pistoleiro Amador (Nelson Xavier) vive com um tédio pesaroso a sua aposentadoria. Do passado agitado e perigoso de crimes, emboscadas e chacinas parece ter sobrado apenas os recortes das páginas policiais de jornais que ele guarda num álbum de fotos encardido. Agora Amador está na antessala do próprio funeral, assistindo aos poucos amigos restantes morrerem de velhice, mergulhado numa solidão que, pelo jeito, foi sua companheira a vida toda.
Para ganhar uns trocados, ele faz bicos para um antigo agenciador, instalando máquinas de caça-níqueis para os bares próximos. A violência e a exploração existem, claro, mas nos tempos atuais, facínoras se travestem de bemfeitores da comunidade – caso de um ex-colega – e homens de negócios, e não há mais espaço para matadores de aluguel à moda antiga como Amador. A modorra desse cotidiano é alterada quando ele acolhe o filho de um antigo amigo e uma equipe de filmagem decide entrevistá-lo como parte de uma pesquisa. A partir daí o orgulho ferido pelo ostracismo e o esquecimento acordam o antigo criminoso para um retorno aos velhos tempos.
A trilha sonora, com Altemar Dutra e até Manolo Otero, ajudam a construir a narrativa de um passado que o protagonista vê com saudosismo e sem arrependimentos, apesar de todo o sangue. A atuação precisa de Nelson Xavier impressiona pela calma dos seus gestos e a voz baixa que, mais do que um estilo, denotam o desânimo de um personagem que parece ter entregado os pontos. No entanto, sua interpretação é de tantas nuances que deixa entrever uma virada da narrativa, um brilho no olhar que denuncia um lobo velho disposto a um último ataque.
O tema do pistoleiro aposentado, recorrente nos faroestes e policiais, é bem desenvolvido pelo diretor goiano Érico Rassi, que acerta ao escolher uma periferia de uma cidade goiana – apesar de não ser exatamente identificada no filme trata-se de Anápolis. O isolamento, a desolação das ruas sem asfalto e vazias, o campinho de futebol esburacado e os cães e gatos sem dono nos lotes baldios são, além de um bom cenário, quase um personagem a mais. A própria situação de Amador, que ocupou a base da pirâmide do mundo do crime, o situa num contexto mais amplo de uma terra sem lei, onde crianças dependem de bandidos até para ter uma atividade de lazer simples num campo de futebol, já que o Estado está ausente.
O filme de gênero, no caso do thriller de suspense e o faroeste, estrutura o roteiro de Comeback, do próprio Érico Rassi, mas as sutilezas do mise en scéne fazem do longa algo bem mais híbrido. Bastante pessoal, a direção do cineasta, apesar de alguns cacos dispensáveis como a auto-ironia do pessoal do cinema que aparece no filme, tem um bom ritmo – a lentidão da narrativa se casa perfeitamente com a tristeza do protagonista e sua nostalgia.
Comeback é o segundo longa goiano a estrear em circuito comercial nacional neste ano – o outro é o documentário Taego Ãwa, que em Goiânia ainda está em cartaz no Cine Cultura e no Lumiére, um feito raro para uma produção local. Sem desmerecer a produção de curtas e outros longas exibidos apenas localmente ou de forma menos sistemática em outros estados, ambos são exemplos de que o cinema em Goiás finalmente está começando a se estabelecer. Outros virão em breve, como o suspense Terra e Luz, exibido no Festival de Tiradentes deste ano, e Duas Irenes, atração do Festival de Berlim, além de longas em fase de produção ou finalização de diretores como Robney Bruno, Pedro Novaes e Jarleo Barbosa.
Comeback, O Filme: Brasil, 2016
Direção: Érico Rassi
Elenco: Nelson Xavier, Marcos de Andrade, Gê Martú, Everaldo Pontes, João Antônio, Henrique Taubaté, Eucir de Souza, Sérgio Sartório e Wellington de Abreu
Cines: Cultura e Lumière Bougainville