“No Brasil há muito pouco, quase nada em termos de acervo fotográfico quando falamos de ditadura militar e sobre as pessoas envolvidas naquele período.” A fotógrafa e professora Mariana Capeletti percebeu isso ao ajudar uma amiga em um trabalho acadêmico e, a partir dessa constatação, decidiu investir tempo e talento para preencher parte dessa lacuna. Começava a nascer, em meados do ano passado, um período de pesquisa e investigação cujo resultado é o ensaio que revela faces e cenários que contam um pouco do que ocorreu nos eventos que ficaram conhecidos como Guerrilha do Araguaia.
O ensaio fotográfico – que ERMIRA tem a honra de publicar neste post – acaba de ser premiado no 13º Festival Internacional de Fotografia de Paraty. “Era um assunto que eu praticamente desconhecia, porque na escola a gente aprende muito pouco sobre o que aconteceu lá. Isso só me foi despertado na faculdade e eu fiquei com aquilo na cabeça.” Mariana aponta os acervos de Evandro Teixeira, sobre a ditadura instalada com o Golpe de 64 de uma forma mais ampla, e do português João Pina, sobre a Operação Condor (que eliminou inimigos de regimes militares em toda a América Latina), como referências. “Mas sobre o Araguaia mesmo quase não há nada.”
No ano passado, após concluir seu Mestrado em Artes Visuais e dando aulas em ritmo acelerado, Mariana fez uma avaliação de sua trajetória profissional. “Eu queria voltar a fotografar, algo que havia deixado de fazer com 23 anos. Eu quero que a fotografia seja minha atividade mais importante. Por isso fui fazer uma pós-graduação na área em São Paulo e se exigia um projeto. Foi quando decidi abordar a Guerrilha do Araguaia”, relata. Ela passou oito meses pesquisando sobre o assunto e em maio deste ano fez sua primeira viagem à região do Bico do Papagaio. “Nesta primeira ida fui para Xambioá e tive muitas dificuldades. As pessoas ainda têm muito medo de falar.”
Devagar, ela foi convencendo suas fontes a dar seus depoimentos e a posar para sua lente. Em julho, ela retornou, visitando também localidades no sul do Pará, como as cidades de São Geraldo, São Domingos do Araguaia e Marabá. Mariana esteve em muitos dos pontos onde a Guerrilha do Araguaia aconteceu, locais em que houve torturas e combates e lugares onde, segundo relatórios como o da Comissão da Verdade, que resgatou parte daqueles eventos, houve desova de corpos de mortos que, até hoje, permanecem desaparecidos. Nessa jornada, a professora da PUC Goiás e da Faculdade Cambury conheceu personagens e ouviu memórias de extremo valor para compreender melhor o que aconteceu no então norte goiano cerca de 45 anos atrás. Confira o ensaio:
Seu Fió havia acabado de chegar à região do Bico do Papagaio e foi confundido com um dos posseiros que ajudavam os guerrilheiros do PC do B, que se instalaram nas matas para combater o regime militar. “Ele disse que, em um dia, ele ouviu um assobio no meio da mata e decidiu responder. Era uma patrulha do Exército, que o acusou de colaborar com os guerrilheiros”, relata Mariana. Ele ficou 40 dias preso, sendo interrogado e torturado. Sua filha não queria que ele posasse para o ensaio fotográfico ou que contasse sua história. Ela disse que ouviu na TV que há pessoas pedindo a volta dos militares ao poder e que tem medo que, se isso vier a acontecer, seu pai volte a sofrer algum tipo de perseguição. / Foto: Mariana Capeletti
As casas, de portas fechadas, em Xambioá, mostram o sentimento reinante na cidade até hoje. Na época da Guerrilha do Araguaia, o lugar tinha cerca de 7 mil habitantes e era o maior aglomerado urbano da região. Durante os 5 anos de combates mais duros, passaram por ali outros 7 mil soldados do Exército brasileiro. As lembranças da população daquele período de medo ainda são fortes. “Eles me perguntavam se eu era algum tipo de informante, a mando de quem estava ali fazendo perguntas. Não foi fácil convencê-los sobre quem eu era”, diz Mariana. / Foto: Mariana Capeletti
Antônio Precatão era vizinho de uma das guerrilheiras mais procuradas durante a operação na região do Araguaia, Dinalva Oliveira Teixeira , mais conhecida como Dina. “Ele foi preso porque, durante a fuga, Dina lhe pediu para que cuidasse de suas criações. Ele ficou e foi acusado de ser cúmplice”, informa Mariana. Passou 22 dias sendo torturado na base do Exército em Xambioá. Levou choques, ficou descalço sobre latas de alumínio abertas, teve a cabeça comprimida por uma instrumento de ferro apelidado de Cachinho de Anjo. “Ele conta que não tinha ideia das atividades de Dina e seus amigos nas matas vizinhas. Sequer estava informado sobre a situação política do País”, acrescenta a fotógrafa. Hoje, ele é um dos rostos mais conhecidos dos camponeses que sofreram violências durante a Guerrilha do Araguaia, dando depoimentos até em Brasília sobre o assunto. / Foto: Mariana Capeletti
Interior da Casa Azul, o principal local de tortura mantido pelo militares na antiga sede do Departamento Nacional de Estradas e Rodagens (Denaer), atual Denit, em Marabá. “O prédio ainda está do mesmo jeito que era naquela época”, ressalta Mariana. Segundo testemunhos e investigações de comissões que tentam resgatar essa história, pela Casa Azul passaram alguns dos principais líderes da Guerrilha do Araguaia e alguns deles foram presos e executados ali. O imóvel, que se tornou um verdadeiro centro de tortura, é formado por vários barracões e um amplo quintal em uma área ao lado da Rodovia Transamazônica. / Foto: Mariana Capeletti
Seu Edson era barqueiro na época dos combates entre as tropas do Exército e os guerrilheiros e transportou, de uma margem a outra do Araguaia, vários integrantes de ambos os lados. Isso o tornou, como muitos outros moradores das redondezas, um verdadeiro arquivo vivo de tudo o que aconteceu naquela época. Os posseiros que habitavam o Bico do Papagaio, então norte goiano, e o sul do Pará foram muito prejudicados com esse embate sangrento. Muitos perderam suas terras e passaram a ser vítimas de grileiros de terras, intimidados pela história em que acabaram envolvidos. / Foto: Mariana Capeletti
Na cidade paraense de São Geraldo, há um Museu da Guerrilha, local que agora está semidestruído após uma história macabra e recente. Em 2014, apenas três anos atrás, descobriu-se que quem geria o lugar era um militar da Marinha, que foi acusado de ser informante das Forças Armadas na região. Os moradores acreditam piamente que continuam sob o olhar vigilante dos militares. Fato é que o homem foi embora para nunca mais voltar e o museu pegou fogo, em um grande incêndio. Na instituição há muito pouco a ser mostrado ou pesquisado. / Foto: Mariana Capeletti
Pedro Marivete foi para a região do Araguaia atrás de terras. Ele era integrante das Ligas Camponesas, grupo muito associado a movimentos de esquerda. Ao chegar à região, foi preso e permaneceu 40 dias na Casa Azul, em Marabá, o mais temido centro de tortura montado pelo Exército para combater os guerrilheiros. Ainda há várias pessoas que foram acusadas de participação na guerrilha morando nas cidades onde os combates aconteceram. Alguns se dispõem a falar. Outros, não. “Muitas cidades são silenciosas, são cidades de medo”, testemunha Mariana. / Foto: Mariana Capeletti
Abel e Maria também eram camponeses na região quando estourou os combates da Guerrilha do Araguaia. Perderam sua terra e ficaram na miséria por terem sido alvo de suspeitas. Muitos de seus vizinhos passaram pelo mesmo pesadelo. Eram acusados de algo que nem sequer compreendiam direito o que era. Alguns tiveram menos sorte ainda, já que foram presos e torturados. Um desses locais ficava em Xambioá e ganhou o apelido de curral. “Lá havia um poço de 3 metros de profundidade onde as pessoas eram deixadas por dias, sem poder sair”, relata Mariana Capeletti. “O clima por lá ainda é muito tenso, muito estranho.” / Foto: Mariana Capeletti
Parte da mata onde muitos dos guerrilheiros foram eliminados e seus corpos, enterrados ou queimados. Um desses militantes era Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, cujo corpo jamais foi encontrado. Um desses pontos de desova é a Serra das Andorinhas, não muito longe da região. Pelo menos 31 camponeses foram mortos durante os anos de Guerrilha do Araguaia, tendo ou não participação direta nos combates. Cerca de 76 deles pegaram em armas durante os combates. / Foto: Mariana Capeletti