Quando fui visitá-la no hospital, a primeira coisa que vi foi a agulha encoberta por esparadrapos enfiada em seu braço magro e descoberto. O soro pingava pouco a pouco ao longo de um tubo de plástico transparente. O lençol que a cobria mostrava formas de um corpo pequeno e encolhido. Ela estava num apartamento simples. Uma claridade de final de tarde infiltrava-se pelas frestas da persiana. Quando me aproximei do leito, a pessoa que a acompanhava pediu licença e saiu.
Escondendo certo esforço para demonstrar que estava disposta, sorriu e perguntou:
“E aí, seu moço, tudo bem?”
Segurei a sua mão enquanto durou a visita, sentado ao lado da cama. Com espanto, procurava naquele rosto inexpressivo e martirizado os sinais promissores de um tempo em que vivemos juntos em Paris, quando era exilada política.
De vez em quando, ela voltava a cabeça em minha direção, um sorriso sem adornos. Acho que procurava agora acomodar-se a um sofrimento diferente. Não era preciso cavar muito para perceber o seu desânimo.
A despeito da claridade mortiça, eu via naquele resto de sorriso a mulher que conheci num meeting organizado pelos trotkistas. Ela me foi apresentada por um amigo francês. Tinha acabado de chegar à cidade, depois de um longo percurso de fuga. Estava feliz, apesar do que sofrera na prisão − a insânia para a qual nunca tivera palavras e sobre a qual evitava conversar.
***
Alguns anos antes, estávamos no Jardim de Luxemburgo para um passeio vespertino.
Naquele encontro, a nossa primeira conversa, como não poderia deixar de ser, foi sobre os projetos futuros. Eu usufruía de uma bolsa de pós-graduação. Ela pretendia ingressar num doutorado em sociologia.
“Já que vou ficar aqui por um tempão, a sabedoria francesa me espera…” − e sorriu timidamente.
Uma chuva que se anunciava parecia animar os canteiros que abrigavam flores coloridas, sobre as quais abelhas zumbiam. Naquela tarde de verão, cheia de promessas, as andorinhas, em voos alegres, poderiam esboçar, se quisessem, um arco idílico no ar. Foi aí que nos debruçamos, como duas crianças, sobre o beiral do lago − e soltamos o inútil barquinho, e vimos quando ele flutuou e seguiu balançando, sem rumo certo.
Depois daquela tarde, encontramo-nos outras vezes nos cafés do Quartier Latin.
A intimidade que tive com ela favorecia perguntas sobre as marcas que tinha acariciado em seu corpo. Preservando a sua dignidade, nunca quis conversar sobre a vilania que sofrera:
“Não me dignifica, só me diminui… E o meu apreço pelo ser humano há muito tempo escorre pelo ralo.”
***
Um dia, por súbitos interesses profissionais, comunicou-me que iria mudar de país. Eu já tinha pressentido que o nosso namoro seria provisório. Por quanto tempo eu precisaria amá-la, a ponto de fazer com que esquecesse os sintomas que a roíam por dentro, dia após dia, como vermes noturnos? As lágrimas nos olhos, quando ela reafirmou a sua decisão, não seriam nada perto dos armanhaques que eu teria de pedir mais tarde ao garçom.
Este foi o nosso último, e menos desesperador, encontro.
***
Certa noite, o meu telefone tocou.
Quando falei alô, reconheci a voz que vinha de um jardim distante.
“Qual era mesmo o nome do barquinho que nós soltamos no Luxemburgo?”
Eu não me lembrava mais do nome daquele barquinho. Mas essa resposta, afinal, não continha a substância mais importante da nossa vida − era só um brinquedo num lago, numa tarde parisiense, em que um homem e uma mulher recordaram por instantes a sua infância.
Era também só uma tarde de verão, em que um antigo carinho, vindo de muito longe, nos aqueceu, e esse sentimento durou só um instante e foi bom.
Luís, ler seu texto nessa tarde chuvosa, deu um certo arrepio. Bonito, muito bonito. Grande abraço.
Linda lembrança, uma excelente homenagem para alguém muito especial!
Bravo!!!
Muito lindo Luís. A vida é uma ficção. De que valeria se não fôsse narrada? Um grande abraço.