Em comparação a outros grandes escritores franceses que foram seus contemporâneos, como Proust e Gide, Roger Martin du Gard (1881-1958), Prêmio Nobel de Literatura de 1937, pode parecer um autor pouco inventivo, para alguns, um pouco antiquado até. Ele próprio, numa carta escrita em 1950, admite que pertencia “ao passado” e que, se sua obra guardava algum interesse, é porque se fundamentava em “bases estritamente históricas”.
É verdade que o grande painel literário que o escritor apresenta em seu romance de maior fôlego, Os Thibault, apresenta mais afinidades com o realismo do século XIX do que com as vanguardas literárias que mudariam o panorama das letras no início do XX. Mas como toda obra de arte de valor que sobrevive a seu tempo, permanece sendo um livro que tem muito a dizer a nossa época. Estão lá temas ainda sensíveis à contemporaneidade, como o interesse individual versus o coletivo, o imperialismo de Estado, o confronto entre uma moral laica e uma moral religiosa, o pacifismo.
O drama de Os Thibault se desenrola de forma linear, sem pressa, ao longo de cinco volumes, que totalizam cerca de 2,5 mil páginas (se levarmos em conta a edição brasileira que saiu há alguns anos pela Globo, com os volumes em formato de bolso reunidos em uma caixa). Porém, o esforço de atravessá-las é compensador. Tendo como pano de fundo o conturbado cenário político do início do século que culminou na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Martin du Gard apresenta um profundo e perturbador relato sobre os descaminhos de uma geração, cujos ideais foram esmagados pelo irracionalismo das armas, deixando em seu rastro um sentimento de cinismo e descrença rapidamente capitalizado pelas ideologias totalitárias que se alastrariam alguns anos depois pela Europa.
O núcleo da trama se centra em dois irmãos, de temperamentos opostos. Jacques, o mais novo, é o idealista, o rebelde, o revolucionário, que crê na possibilidade de um humanidade fraterna, justa e pacífica. Antoine é o racional, o equilibrado, dotado de espírito prático, para quem a redenção do homem só pode se concretizar pelas mãos da ciência – que o libertará das crenças cegas, dos dogmas alienantes, das ideologias enganadoras. O destino de ambos, entretanto, é comum: ver suas convicções, suas esperanças, seus sonhos serem tragados pela grande torrente da Primeira Guerra Mundial.
Cada um, à sua maneira, rejeita os valores do pai e, de quebra, da tradição burguesa que ele representa. M. Thibault é um católico conservador que cerra fileiras ao lado daqueles que se opõem a um Estado inteiramente liberto da tutela da Igreja e também às conquistas da classe trabalhadora. Jacques é o que confronta mais abertamente o pai e, por isso, também é o que sente mais diretamente na pele a tirania paterna. No primeiro volume do romance, um ainda adolescente Jacques, como represália por ter fugido de casa, é internado na penitenciária criada por M. Thibault para disciplinar jovens rebeldes.
Esse espírito indômito é tomado por uma revolta interior, um inconformismo que encontrará guarida na utopia socialista de uma humanidade sem divisão de classes, na qual predominará a justa distribuição de riquezas. Para o leitor atual, o idealismo de Jacques pode soar ingênuo, mas ele faz sentido num contexto em que a Internacional socialista arrebanhava milhares de militantes mundo afora, todos eles absolutamente convictos a respeito da iminência de uma revolução proletária mundial. Mesmo assim, diga-se a favor de Roger Martin du Gard, o perfil psicológico que ele desenha de Jacques não é assim tão retilíneo: no âmago de suas crenças, o jovem Thibault sente o despertar da dúvida quanto às possibilidades concretas de surgimento desse “novo homem”, justo e solidário, idealizado pelo socialismo.
Jacques tem em Meynestrel, líder da Internacional socialista em Genebra, uma espécie de contraponto. Ambos concordam quanto aos fins da luta revolucionária, mas divergem no que se refere aos meios. O primeiro é pacifista, acredita que o conflito armado prestes a eclodir na Europa só serve aos interesses do capital e prefere desertar do Exército a matar trabalhadores de outras nações nos campos de batalha em nome das razões de Estado.
Meynestrel, por seu turno, vê na guerra que se avizinha não uma ameaça, mas a chance de desestabilização dos Estados europeus, que ficariam assim vulneráveis a uma revolução socialista. Os fins justificam os meios, nem que seja à custa do sacrifício de milhares de seres humanos no front. O seu projeto, a História o dirá, não se realiza, porém, sua bizarra crença de que, para alcançar o ideal de uma sociedade fraterna de trabalhadores no futuro, é lícito que se deixem esmagar milhões de trabalhadores no presente encontrará eco na Rússia stalinista.
Racionalismo
O irmão mais velho de Jacques, Antoine, procura escapar à opressão paterna por outro caminho, o da medicina. Aos valores do pai, contrapõe sua fé na razão – é só por meio dela, acredita, que o homem pode alcançar uma autonomia moral. Em oposição a Jacques, ele é, contudo, perfeitamente integrado à sociedade em que vive. Aceita-a, mesmo reconhecendo as desigualdades que nela imperam. Para Antoine, imbuído dos valores positivistas, a humanidade se aperfeiçoará aos poucos, por meio do progresso material e científico. Em razão disso, considera utópicos os ideais de Jacques. Crê que cumpre corretamente seu papel de cidadão sendo um bom médico, dedicado ao ofício.
Quando a guerra está prestes a eclodir, Antoine usa a si mesmo como modelo para julgar a atitude dos governantes da França. Acaso também não agem eles, como Antoine, movidos pela razão, pelo seu senso de responsabilidade? No momento em que é chamado aos campos de batalha, Antoine não hesita em vestir a farda. Só depois de quatro anos no front da chamada “drôle de guerre” (estranha guerra) pelos franceses é que ele percebe o quanto a sua fé na racionalidade das autoridades do seu país era ingênua.
Morte
Com a mesma agudeza com a qual expõe os dramas políticos, Du Gard disseca os conflitos de natureza mais íntima. Um dos grandes momentos de Os Thibault é o que descreve o dilema enfrentado por Antoine quando seu pai agoniza no leito de morte. O que fazer? Ouvir a voz do coração e abreviar o suplício de M. Thibault, aplicando-lhe uma injeção de morfina que provocaria sua morte imediata ou seguir à risca o código de conduta da profissão, que condena a eutanásia mesmo quando não há mais salvação para o paciente e continuar vivendo tornou-se um martírio para ele?
O romance também se detém nas aventuras e desventuras amorosas de seus protagonistas. A Antoine, são dedicadas longas páginas a sua relação com Raquel, a quem ama apaixonadamente, embora saiba que essa ligação não tem futuro. Os amores de Jacques incluem uma inclinação platônica por Daniel Fontanin, um colega de colégio, e, mais tarde, a grande paixão pela irmã de Daniel, Jenny – uma passagem tocante do livro é quando Jacques beija a sombra da amada projetada no muro. Uma concessão ao romantismo neste livro tão cruelmente, e lucidamente, realista.
Roger Martin du Gard nasceu a 23 de março de 1881, numa família burguesa e católica de Neuilly-sur-Seine, perto de Paris. Graduou-se como arquivista paleógrafo pela École de Chartes e, em 1908, escreveu seu primeiro livro, La Vie d’un Saint, que não chegou a publicar. Em 1913, juntou-se ao grupo da La Nouvelle Revue Française, liderado por André Gide. A composição de Os Thibault começou em 1920. O romance foi sendo publicado aos poucos – o sétimo e último volume saiu em 1936. No ano seguinte, Du Gard era laureado com o Prêmio Nobel de Literatura. O autor também escreveu uma novela, La Confidence Africaine; um ensaio, La Vieille France, e um volume de memórias, Souvenirs Autobiographiques. Morreu a 22 de agosto de 1958, em Tertre. Sobre Du Gard, Camus disse que ele “é nosso contemporâneo perpétuo”.