De Funchal, Ilha da Madeira – O cartão de visitas não poderia ser mais, digamos, emocionante. Mas emoção mesmo, frio na barriga e na espinha, suor na testa e uma boa Ave-Maria para acompanhar. Cerca de uma hora e meia depois de decolarmos de Lisboa e de uma viagem monótona sobre o Oceano Atlântico, pequenas formações rochosas começam a surgir e o piloto, na cabine do avião, a se preparar. Sua missão é única no mundo: pousar sobre um viaduto. Isso mesmo! Encrustada entre uma montanha e uma baía, a pista de pouso se eleva sobre uma construção de concreto apoiada por 180 colunas descomunais, com uma estrada passando por baixo.
O nome do aeroporto, que homenageia o jogador de futebol Cristiano Ronaldo, não deixa dúvidas de onde acabamos de desembarcar. A Ilha da Madeira, território autônomo mas que integra a nação portuguesa, tem pouco mais de 260 mil habitantes – a maior parte concentrada em sua capital, Funchal – e um sem-número de belezas naturais que compartilham o espaço com surpreendentes e grandiosas obras de engenharia. O aeroporto, considerado um dos mais perigosos do mundo devido às rajadas de vento que recebe, é apenas uma delas. Nos 801 km quadrados da ilha, há nada menos que 180 túneis. É a maior concentração desse tipo de construção no mundo.
Essa malha subterrânea é necessária para a circulação pela Ilha da Madeira, que tem um relevo extremamente acidentado, alternando montanhas e picos, com vales e despenhadeiros, ravinas que chegam a centenas de metros de altura. Nessas grimpas, pequenos povoados foram sendo criados, alguns deles só acessíveis até bem pouco tempo atrás apenas por barco, em navegação pela costa da ilha. Estradas mais antigas já existiam desde os anos 1940, quando rochas escarpadas foram perfuradas para a construção de caminhos extremamente estreitos e perigosos, onde acidentes graves eram comuns e – vamos combinar! – inevitáveis. Uma verdadeira roleta-russa rodoviária.
Isso começou a mudar quando a Ilha da Madeira passou a ser mais ocupada por imigrantes e foi se tornando, aos poucos, um destino turístico interessante. As belezas naturais do lugar começaram a atrair não só os portugueses do continente, como também muitos europeus de outros países. Localizada a apenas 200 km do Marrocos e rota de cruzeiros luxuosos que singram as águas do Atlântico, a Madeira (como o pessoal local gosta de chamá-la) tem uma posição estratégica. Ela já foi um entreposto comercial e uma parada conveniente para grandes navegações, onde os navios podiam ser reabastecidos e a tripulação conseguia descansar.
Esse potencial, observado pelo governo local, conseguiu atrair muitos investimentos, sobretudo após a entrada de Portugal na União Europeia. Foi o bloco econômico, e não exatamente o governo de Lisboa, que revolucionou a infraestrutura da Madeira. Desde a construção do primeiro túnel, em 1955, até o ano 2000, apenas 20 ligações subterrâneas haviam sido construídas na ilha. Isso dificultava muito a interação entre a capital Funchal, que fica no sul, com centros urbanos em outras regiões, como Porto Moniz, a noroeste, São Vicente e Santana, ao norte, Ribeira Brava, Calheta e Ponta do Pargo, a oeste, e Caniçal e Machico, a leste.
Nas duas últimas décadas, esse cenário mudou e transformou a ilha totalmente. Enormes viadutos, elevados e túneis que chegam a ter quase 3 km de extensão cortaram o território. As antigas estradas ainda são utilizadas em passeios turísticos ou como fuga do trânsito mais pesado, já que o maior fluxo de mercadorias e pessoas se dá mesmo pelas grandes vias rápidas e estradas secundárias que conseguiram domar o relevo hostil. E isso proporciona paisagens deslumbrantes enquanto passamos por suas pistas. Vales, cachoeiras, cânions, bosques e praias belíssimas desfilam diante dos olhos, em cenários dignos de cinema. Andar pela Madeira é deslumbrar-se o tempo todo.
Funchal é uma cidade muito aconchegante, bem cuidada, de trânsito racional e ótimas opções de lazer e gastronômicas. Aliás, come-se muito bem na Madeira, dentro da melhor tradição portuguesa. Os peixes, como não poderia ser diferente, são os carros-chefe dos cardápios. Além do bacalhau (claro, ó pá!), há também os pratos com o espada preto, pescado típico da costa madeirense, preparado nas mais diversas receitas. Eles também capricham em tudo que fazem com frutos do mar. Quem quiser se esbaldar na comilança e ainda ouvir um belo fado na noite madeirense, deve se dirigir para a região da Zona Velha, onde se concentram muitas casas do ramo. Opções não faltam.
Tudo isso deve ser regado a um bom vinho português (do Alentejo ou os vinhos verdes insuperáveis de Portugal). Mas já que está na Madeira, não deixe de degustar o vinho Madeira, ora pois! Em Funchal há uma loja (e um museu) da marca Blandy’s, centenária adega que prepara esse tipo de vinho de sabor encorpado como nenhuma outra. Há quatro variações, indo do mais forte ao mais docinho. Experimente todos, você não vai se arrepender. Fora da capital, nos povoados menores, a culinária também é de qualidade. E bota qualidade nisso. Pratos bem servidos e temperos na medida. Aliás, é impressionante o que se come na Madeira, meu Deus do céu!
A região dos restaurantes em Funchal fica em sua área mais antiga, onde estão a marina, o Mercado Municipal, os palácios de governo e a catedral. Dali também se pode pegar um teleférico que leva à parte alta da capital madeirense, de onde se tem uma linda vista. Um amplo calçadão na Avenida do Mar convida a um passeio. Essa estrutura é recente e foi construída após a trágica inundação que assolou a ilha em 2010, deixando dezenas de mortos e arrasando o que havia na parte baixa, onde a enxurrada chegou com força. Por ali também está o Museu Cristiano Ronaldo, em homenagem ao jogador nascido na Madeira, com sua horrorosa estátua que virou piada no mundo inteiro.
Funchal tem outros pontos de convívio gastronômico, como a região dos hotéis. Um deles, o Pestana, onde há um cassino, foi projetado por Oscar Niemeyer. Todos os quartos do prédio dão vista para o mar. Indo um pouco mais para o oeste, chega-se à Igreja de São Martinho, localizada em uma elevação e que tem um cemitério de arquitetura muito bonita logo à sua frente. Subindo um pouco mais o morro, há o Pico dos Barcelos, de onde se tem uma das vistas panorâmicas mais completas e arrebatadoras de Funchal. Um mirante foi instalado ali e dele se tem uma noção melhor de como a cidade escorre por montanhas íngremes e vales escarpados.
Fora da capital há muitos outros recantos da ilha a explorar. Indo em direção oeste, fica a vila de Câmara dos Lobos, com sua comunidade de pescadores e um mercado movimentado. Ela é a porta para se percorrer o lado ocidental da ilha, que tem pontos de beleza inacreditável. Um deles é o Cabo Girão, localizado no topo de uma falésia e cuja altura para a praia lá embaixo é de vertiginosos 580 metros. É o promontório mais alto da Europa. Uma plataforma transparente dá a sensação de flutuar sobre o mar. Mais à frente fica Ribeira Brava, com suas estradas que serpenteiam em um conjunto de vales, os mais profundos de toda a Madeira.
Seguindo por este mesmo caminho, já na separação entre as partes sul e norte da ilha, alcançamos a Serra da Água, de onde partem trilhas para caminhar entre uma floresta densa. Um bom restaurante e um hotel de luxo marcam os pontos de início dessas caminhadas de aventura, que na Madeira recebem o nome de levada. Ultrapassando essa montanha, mergulhamos em uma reserva de mata virgem, onde ficam diversos pequenos povoados que se sustentam plantando frutas e hortaliças. A cada curva, uma pequena igrejinha, um amontoado de casas, chácaras cheias de hortas e pomares, pontes antigas sobre riachos. A vida, nessa região, não tem pressa.
Mais embaixo, aparece, vejam só, um kartódromo enfincado no meio dos morros e mais uma série de túneis e estradas que nos conduzem às Grutas de São Vicente. Trata-se de um conjunto de cavernas muito antigas, no interior das quais há um passeio bem interessante de ser feito. No final, um centro de informações mostra como a Madeira surgiu, a partir de erupções vulcânicas ocorridas milhares de anos atrás. Todos os vulcões existentes na região agora estão adormecidos, mas eles foram os responsáveis, no encontro com o mar, por formar essa ilha de relevos tão bruscos. Em São Vicente, pedras monumentais lembram esse embate de titãs.
Entre São Vicente e a cidade próxima, Porto Moniz, a estrada se espreme entre uma formação rochosa e o mar. O cenário não poderia ser mais paradisíaco. Do alto da montanha, despenca uma cachoeira bem ao lado do caminho, logo antes da entrada de um túnel. Do outro lado, Porto Moniz, um dos mais bem estruturados povoados da Madeira, convida a um banho no complexo de piscinas, abastecidas pelas ondas e marés. A água é fria e é bom ir com calma, tomar coragem para enfrentar a temperatura baixa. As piscinas foram construídas no meio de rochas esculpidas pela força do mar. A cidade também tem uma das vistas mais bonitas do litoral noroeste da ilha.
Para voltar de Porto Moniz, há dois caminhos possíveis. Um, mais rápido, é pelo Túnel da Encumeada, o mais extenso da Ilha da Madeira, com quase 3 km de comprimento. O outro, bem mais interessante, é subindo a serra, por uma estrada que merece atenção por ser estreita e sinuosa, mas que vale a pena conhecer. Lá no alto, há um altiplano, onde a névoa domina. As nuvens circulam com rapidez nessa área, mudando a paisagem a cada momento. Temos a sensação de flutuarmos acima delas, como se estivéssemos em um avião. Este é praticamente o único terreno plano da Madeira e ele foi escolhido para a implantação de usinas de energia solar e eólica.
Também acima das nuvens se sente quem visita o outro lado da Madeira. Mais para o interior fica o Pico do Areeiro, que tem 1.818 metros de altura e é o terceiro ponto mais alto da ilha. Há dois pontos de observação, cada um para uma das extremidades da Madeira. Não longe está o Pico Ruivo, o maior deles, com seus imponentes 1.861 metros de altura. Já descendo por um de seus lados, passamos ao lado do Curral das Freiras, uma brenha que ganhou este nome por ser o lugar onde religiosas se refugiavam de piratas que assaltavam a Madeira séculos atrás. Esse esconderijo, ainda hoje, é de difícil acesso, mostrando sua eficiência ao longo dos tempos.
No extremo da costa leste, por meio de outra estrada sinuosa – e há alguma que não seja na ilha? –, alcançamos a Ponta de São Lourenço. É simplesmente espetacular. Praias desertas e despenhadeiros emolduram o local onde o vento e o mar fazem a curva na Madeira. Em uma região próxima, há o lindo povoado de Santana. Subindo uma das serras da Madeira, encontramos casas típicas, que são cartões-postais do lugar. Pequenas e com arquitetura muito peculiar, elas são coloridas, com janelas e portas pequenas e telhado construído em ângulo acentuado. Elas se parecem com verdadeiras casas de boneca e algumas se transformaram em lojas de lembrancinhas ou pequenos restaurantes.
Esse roteiro da costa leste se completa com uma visita à cidade de Camacha, onde é preservada a tradição do artesanato com sisal, espécie de palha com a qual são fabricadas verdadeiras obras de arte feitas à mão. Descendo a serra, há a histórica Praia de Machico. Foi nesse ponto que a ilha foi descoberta por Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira em 1419, nos primórdios das grandes navegações portuguesas. A pequena cidade que dá nome à praia tem uma igreja que está entre as mais antigas construídas na Madeira e um ambiente tranquilo e convidativo. Detalhe: ali está uma das poucas praias da ilha com areia. Areia esta que foi importada do Marrocos.
Como se percebe, visitar a Ilha da Madeira é uma viagem que, mesmo não demandando uma logística que exige planejamento mais complexo, vale muito a pena ser feita. Há uma diversidade impressionante de atrativos, com passeios que enchem os olhos e a memória de imagens inesquecíveis. A rede hoteleira é muito boa, com variadas opções de preço, e os guias turísticos são de grande competência e gentileza. Recomenda-se que essas incursões pela Madeira sejam feitas com quem conhece bem seus caminhos tortuosos. Depois de tudo, é hora de ir embora e partir daquele aeroporto… Aquele que fica em cima de um viaduto.
Fantástico!!! Viajei lendo e apreciando, texto e fotos. Parabéns!!