O calor se traduzia no suor que escorria brilhante, em sua glória, das testas de todas as cores, de todos os tipos de dores de cabeça. A viela da Morte, por desprezível ironia, desembocava no beco da Esperança. Na viela da Morte, já ajudei dona Jaci a limpar os fluidos magenta de um amigo que foi morto por uns tiras. Carlito. Moleque órfão que usou sua esperteza precoce para métodos não amigáveis da lei, Carlito era infalível, dono de uma oratória que fazia ateu virar padre, dondoca virar favelada. Foi na viela da Morte que escutei, meio a contragosto, a longa e cansativa narrativa da Dona Francisca, mãe de Carlito: “Ele entrou para o esporte, dei dinheiro para a chuteira e tudo. O moleque tem futuro…”. Um mês depois, Dona Francisca estava chorando na birosca do Seu Tinoco ao descobrir o esporte em que Carlito era craque − vender cocaína.
Meses depois lá estava eu, vendo um líquido vermelho serpentear misturado à água. Lá se ia a esperteza de Carlito lavando a viela da Morte. Dona Jaci chorava que se tremia enquanto esfregava o chão, esfregava o que sobrara de uma vida como um peixeiro em final de feira. Não chorei. Talvez porque não acreditava, afinal não tinha visto o corpo sem vida de Carlito. Até ali aquele sangue poderia ser de qualquer um favelado. Falei isso para Dona Jaci. Ela me respondeu, ainda tremendo, que do jeito que Carlito fora morto dificilmente veria o que tinha sobrado dele.
Nunca vi Carlito morto. E até hoje não acredito em sua morte. Ainda acredito que o verei algum dia descendo o morro com suas chuteiras, implicando com o vira-lata pulguento da Dona Jaci.
***
A polícia invadiu o morro ontem. O pessoal da TV se amontoava medroso com seus coletes na entrada do morro, o lugar menos pior, feito urubus sobre a carcaça. Muitos tiros. Parecia que estava em uma trincheira. Aprendi sobre trincheiras na aula de história. Enquanto o professor falava sobre as guerras mundiais, pensei que estivesse descrevendo as operações no morro − era algo muito parecido mesmo. Ele me deu nota máxima na prova porque eu disse que as favelas são trincheiras da cidade. Os favelados ficam quietos dentro de seus barracos, de suas trincheiras, passando por todas as dificuldades, observando o caos da guerra, de mãos atadas. Não podem fazer nada senão ficar nas trincheiras, esperando aquela zona acabar. O professor me deu um chocolate com umas montanhas que pareciam o morro. Coisa de grã-fino mesmo. Disse que era um favelado esperto. Lembrei de Carlito.
Cheguei no barraco com o chocolate. Como um prêmio. Levei uns tapas da minha mãe, que perguntou se eu tinha pego aquilo de alguém. Expliquei e mostrei a prova para ela que, apesar de não saber ler, entendeu o 10 escrito no papel. No fim, acabei dividindo o chocolate com a família inteira. Enquanto comíamos, escutamos tiros. Um atrás do outro. Sedentos por carne inocente. Saciando as câmeras da TV, que adorava uma tragédia gratuita. Ignoramos − meio que já estávamos acostumados com as nossas trincheiras.
Depois do cessar-fogo − aprendi isso também na aula de história e gostei −, uns tiras apareceram na porta do barraco. Um deles pegou a embalagem do chocolate das minhas mãos:
− Furtou isso aonde, moleque? – me encarou, com sentimentos indecifráveis. Dessa vez eu não tinha tanta certeza se a minha prova ia valer como prova. Uma coisa que aprendi também nas aulas de história: quem vivia nas trincheiras era destemido. Mas o fato de ser destemido não anulava o sofrimento. Não anulava situações diárias degradantes.
Que texto Gabi. Me emocionou.
Parabéns. Espero ver mais textos seu.
Linda a crônica Gabi,quantas d.jaci ainda vai surgir ,e de quantas trincheiras ainda teremos que esconder,e quantas provas terá um dez pra provar que ainda a tem quem estude ,pra ser alguém.
Nossa. Parabéns pelo texto, Gabi! Ele transmite exatamente como é o dia a dia de um morador de periferia.