A palestra “O Brasil ainda é uma democracia? Crises, transições e impasses no anoitecer da Nova República”, com o Prof. Dr. Francisco Mata Machado Tavares, da Faculdade de Ciências Sociais/Programa de Direitos Humanos da UFG, abre a programação do projeto Salões de Cultura neste sábado, dia 19 de maio, na Livraria Palavrear (Rua 232, nº 338, Setor Universitário. Telefone: 3086-3204). Coordenado em nível nacional pelo professor Milton Meira do Nascimento, da Faculdade de Filosofia da USP, o projeto Salões de Cultura estreia suas atividades em Goiânia com o propósito de oferecer cursos, palestras, oficinas e conferências com professores, pesquisadores e outros profissionais renomados das mais diversas áreas do conhecimento. As inscrições para assistir à palestra custam R$ 20 e podem ser feitas pelo site do Salões de Cultura (www.saloesdecultura.com.br) ou na Livraria Palavrear, no dia do evento, com direito a certificado emitido pela coordenação nacional do projeto.
Bacharel em direito e doutor em ciência política pala UFMG, o professor Francisco Mata Machado Tavares tem se dedicado a pesquisas na área de teoria democrática contemporânea e política fiscal. Na entrevista a seguir por e-mail a ERMIRA, ele adiantou alguns temas que vai tratar na palestra do dia 19 e fez uma análise geral do quadro político do país. Confira.
O título de sua palestra se inicia com uma pergunta sobre se o Brasil ainda é uma democracia. Há razões concretas para duvidar se estamos vivendo na atualidade sob um regime democrático no país?
A literatura dedicada aos estudos sobre teoria e instituições políticas tem convergido para um raro consenso, a incidir sobre produções emanadas de diferentes perspectivas teóricas, metodológicas ou ideológicas. Trata-se da constatação de que, mundialmente, experimenta-se um contexto de declínio dos regimes democráticos. O Brasil não é exceção a este fenômeno. Ao contrário, há significativos indicadores de que a democracia brasileira − ainda que avaliada sob perspectiva teórica minimalista − encontra-se em declínio. Em um livro publicado em 2018 sob o título Como Morrem as Democracias, dois cientistas políticos de Harvard, [Steven] Levitski e [Daniel] Ziblat, apresentam quatro critérios objetivos para que as lideranças de um país sejam testadas quanto ao respectivo respeito pelo regime democrático, nomeadamente: 1) respeito às regras do jogo, o que se revela, por exemplo, no reconhecimento dos resultados eleitorais; 2) reconhecimento da legitimidade dos adversários, o que exige que oponentes não sejam classificados como “inimigos” ou “criminosos” que devem ser banidos da cena política; 3) rechaço ostensivo e não compactuação com a violência política; e 4) respeito aos direitos civis e às liberdades constitucionais, assegurando aos oponentes elementos como liberdade de expressão e direitos de manifestação. Ora, em um país onde interceptações telefônicas indicam que Aécio Neves questionou um resultado eleitoral apenas − nas palavras do candidato derrotado − “para encher o saco”; em que a principal liderança política encontra-se detida em um processo atécnico; em que o presidente do PSDB e pré-candidato à presidência comenta, a propósito do disparo com armas de fogo contra a caravana de seu adversário, que “o PT colhe o que planta”, e em que protestos, críticas e práticas de oposição em geral tendem a ser crescentemente judicializados ou simplesmente reprimidos nas ruas, fica claro que a democracia não parece estar garantida.
Os defensores do processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff o justificam dizendo que tudo correu conforme a Constituição Federal e que as instituições no Brasil estão funcionando devidamente. Como o senhor analisa essas alegações?
Há três elementos problemáticos na deposição de Dilma Rousseff:
1) primeiramente, nota-se que o direito financeiro brasileiro não prevê que o inadimplemento de obrigação ex lege pelo Poder Executivo (e.g., repasse de recursos aos bancos públicos para pagamento de despesas por estes gerenciada) possa ser equiparado à concessão de crédito pelos bancos à União. Ademais, a abertura de crédito suplementar pelo Poder Executivo em valores condizentes com a meta fiscal para o ano não se define, sob nenhuma hipótese, como “crime contra a lei orçamentária”. Em suma, o argumento técnico para a subtração do mandato de uma presidente eleita foi inconsistente;
2) sob o Estado de Direito, as decisões públicas devem ser justificadas e só possuem validade quando guardam pertinência com os respectivos fundamentos. Dilma foi deposta com base em sessões parlamentares pautadas por homenagens a torturadores, pregações fundamentalistas e toda sorte de discurso alheio à matéria em pauta. Apenas por esta razão, a decisão seria nula;
3) os estudos contemporâneos sobre declínio de regimes democráticos são pródigos em indicar que elementos como combate à corrupção ou obediência à lei orçamentária são, frequentemente, invocados de modo seletivo para que, sob uma forma aparentemente lícita, golpes contra a democracia tenham lugar. É o caso do Brasil em 2016. As práticas orçamentárias que teriam respaldado o golpe foram praticadas desde a gestão de Fernando Henrique Cardoso e, no âmbito das unidades federadas, são usualmente efetivadas por governadores. Assim, uma medida supostamente adequada foi imputada apenas contra Dilma, indicando a seletividade do processo e o malferimento à vontade das urnas.
Estamos vendo também o surgimento de forças de extrema-direita no país, defensoras do regime militar e que apoiam a candidatura de Bolsonaro. Como o senhor avalia esse fenômeno? Ele de fato constitui um tipo de fascismo à brasileira que representa uma séria ameaça à democracia no país?
Há uma justa controvérsia quanto à adequação do uso da palavra “fascismo” para se indicar tais fenômenos. É certo, contudo, que a emergência de lideranças autocráticas, sem respeito pelos direitos constitucionais e saudosas do regime de exceção vigente entre 1964 e 1984 encerra, dentre outros, um signo de que o país enfrenta um quadro crescentemente autoritário. Outros signos deste fenômeno podem ser observados na redução de direitos sociais, na elevação da repressão contra o dissenso político, no aumento da rigidez fiscal a inviabilizar o custeio de direitos fundamentais e na proliferação de discursos de ódio em meio à esfera pública.
Por outro lado, o senhor concorda com o entendimento de várias correntes da esquerda segundo o qual as eleições presidenciais sem a participação do ex-presidente Lula, o candidato mais bem posicionado das pesquisas eleitorais, constitui uma fraude?
Uma eleição em que a maior liderança do país é privada de disputar por força de uma decisão judicial tecnicamente inconsistente (como explico aqui: https://palavrasocialista.wordpress.com/2018/01/25/o-que-aprendi-com-a-condenacao-de-lula/) terá a sua legitimidade permanentemente sob suspeita.
Quanto ao papel do poder Poder Judiciário no Brasil contemporâneo, como o senhor o analisa? Há de fato um ativismo político por parte de juízes e procuradores que representa uma ameaça ao equilíbrio entre os três poderes?
Estou de acordo com Mark Tushnet, professor de direito constitucional em Harvard, para quem “a Constituição é muito importante para ser entregue apenas à magistratura”. Quando um corpo composto de pessoas vitalícias, inamovíveis, com prerrogativas quase insindicáveis, e alheias a qualquer expediente de accountability horizontal, vertical ou social, passa a imiscuir-se na esfera decisória dos cidadãos, está-se diante de uma tecnocracia, de sorte que a democracia deixa a cena. Um mero ritual, como a aprovação em um concurso, não pode conferir a nenhum segmento social poderes vitalícios e alheios ao controle social.
No livro A Elite do Atraso, o sociólogo Jessé de Souza propõe um novo paradigma para compreender o Brasil − diferente das ideias do patrimonialismo e do populismo −, que seria a nossa herança escravocrata. O senhor concorda com essa tese?
O livro de Jessé de Souza é criativo e instigante. De fato, não se pode subtrair do cânone interpretativo sobre o Brasil o elemento do passado escravagista. Tenho dúvidas, contudo, se o modo iconoclasta como este argumento é apresentado − conformando uma diatribe contra os principais intérpretes e ensaístas do pensamento social brasileiro que precedem o autor − seja o mais adequado para expor estas ideias.
Serviço
Salões de Cultura
Palestra: “O Brasil ainda é uma democracia? Crises, transições e impasses no anoitecer da Nova República”, com o Prof. Dr. Francisco Mata Machado Tavares, da Faculdade de Ciências Sociais/Programa de Direitos Humanos da UFG
Data: 19 de maio (sábado), às 16 horas
Local: Rua 232, nº 338, Setor Universitário. Telefone: 3086-3204
Inscrições: www.saloesdecultura.com.br ou, no dia da palestra, na própria livraria, com direito a certificado emitido pela coordenação nacional do projeto Salões de Cultura
Salões de Cultura em Goiânia
Em Goiânia, o projeto Salões de Cultura é coordenado pela professora Helena Esser dos Reis, da Faculdade de Filosofia/Programa de Direitos Humanos da UFG e pela jornalista Rosângela Chaves, doutoranda em Filosofia e editora-executiva do site Ermira Cultura. A coordenação do projeto em Goiânia conta ainda com o apoio da Livraria Palavrear e do site Ermira Cultura.