Na semana passada, voltei a uma das três igrejas da minha infância católica, a Imaculado Coração de Maria. As outras duas são a Nossa Senhora de Fátima, cujos vitrais azuis fazem seu cristo de lata dançar, e a Igreja São Judas Tadeu, que me atormentava com os santos-titãs do Frei Confaloni. Fui a uma missa de sétimo dia da perda de uma tia querida. Tudo ali me era tão familiar como na época em que eu costumava acreditar. Acho que entrei num buraco de minhoca de sentimentos, pois até mesmo o estranhamento diante da escultura de Santa Ágata com um punhal cravado no peito se repetiu. Mas eu não sou mais aquela menina que segurava fervorosamente um círio no tempo pascoal.
E não é que menos de 24 horas depois estava eu diante de uma “confirmação” disso? Na Galeria Plus, depois de ouvir o artista Wolney Fernandes descrever poeticamente os modos de atravessamento da literatura no seu processo de criação, a querida Lydia me apresentou a série de colagens Concebidos com Pecado. Cada prancha uma charada: qual santo? Que elementos icônicos lhe foram atribuídos? As chaves. Os animais. A balança. Quais os ingredientes da dissociação para torná-los tão atuais? Quanto de intempestivo? As colagens de Wolney Fernandes reforçaram aquele sentimento de não coincidência comigo mesma na igreja. Voltei para casa procurando-me nos pedaços que sobraram daquela tarsilla. Meu arcaico de hoje. A curiosidade secular pela crença no sagrado. A paixão anacrônica pelas diferenças que produzimos sendo o outro do outro. A atração imperiosa pelas trevas que nos constituem.
Do individual ao coletivo, tenho sempre em mente a observação de Schiller, aquela de que o sujeito moderno sente saudade do todo, mas não pode mais crer na totalidade. Daí viria nossa obsessão pela metonímia, pelas partes, pelas ruínas. Somos todos poetas “sentimentais” porque temos consciência da impossibilidade de participar de qualquer coisa que seja UM. Os antigos foram poetas “ingênuos” porque não pensavam sobre isso. Apenas viviam integralmente o que lhes era dado viver. Vale evocar aqui a belíssima aula sobre “Os poderes do fragmento”, que o professor e historiador da arte Jorge Coli nos dá: cansado da perfeição idealizante produzida pela fé ou pela razão, o sujeito moderno vai buscar uma nova energia na imperfeição do fragmento. Pois que inventamos muitos jogos metonímicos, pintamos quadros como A Origem do Mundo de Courbet e escrevemos O Poema das Sete Faces de Drummond – dois grandiosos exemplos de quando a “parte” causa vertigem existencial.
O conjunto de colagens dos santos católicos de Wolney Fernandes renova o jogo da metonímia na contemporaneidade. A novidade não está tanto no artifício da colagem, sem desprezar absolutamente a perfeição do fazer cortar/colar do artista goiano. A técnica em si está anunciada pelo “princípio da oposição violenta”, na própria pintura, desde Almoço sobre a Relva (1862) de Manet (fico sempre em dúvida sobre o que está mais “descolado” ou “deslocado” nesse quadro: a mulher pelada na roda de conversa, a outra distante que parece uma ninfa fora do tempo ou o próprio cenário – seria tranquilo ver todos esses personagens em um cabaret, por exemplo). Depois a colagem teve sua hora e vez com Braque, Picasso e outros modernistas, contribuindo para a denúncia do arbitrário dos signos, da superfície da tela e do opaco da linguagem nas artes pretensamente representativas. Mesmo assim, há que se destacar na empresa do artista goiano o desejo de fazer a parte voltar para o todo, e isso sim seria uma novidade para a história da técnica utilizada.
O belo trabalho de Wolney Fernandes instiga porque usa a colagem para dessacralizar imagens da hagiografia católica. “A ideia é profanar imagens sagradas articulando meios de retirá-las do pedestal e colocá-las para circular de outros modos” me disse o artista.
Então nós vemos São Sebastião, São Francisco de Assis, São Pedro, entre outros ícones do cristianismo, ganharem corpos recortados de revistas eróticas masculinas antigas, cercados e envolvidos pelo esplendor das glórias mais comezinhas e mundanas como gatinhos fofos, shorts esportivos, braceletes pulseiras piercings e auréolas douradas etc. Figuras extraídas das mais aleatórias fontes – mas sabemos da preferência de Wolney por livros de botânica e revistas das décadas de 50 e 60 – totalizam-se harmoniosamente na composição final, fazendo-nos mesmo esquecer por alguns instantes que de colagem se trata.
Nesses instantes mágicos em que as imagens ganham vida em mim, devaneio de volta à tradição hagiográfica em que tantos santos foram mortos por despedaçamento: Orfeu (um santo avant la lettre, prefiguração de cristo) picotado pelas bacantes furiosas com o descaso a seus amores; São João Batista decapitado pela caprichosa Salomé; Santo Erasmo, cujos intestinos foram-lhe retirados ainda em vida; São Bartolomeu, que teve a pele arrancada de si para carregá-la como se fosse um roupão. (A lista pode ser aumentada…) Importa lembrar que o corpo, nessa tradição religiosa, era a morada do sagrado. Os martírios, portanto, significavam o sacrifício físico como testemunha da fé. A fragmentação do corpo do fiel o santificava.
Com o que, os corpos de santos, que na antiguidade cristã eram despedaçados para honra do senhor, ganham, ironicamente, na dessacralização contemporânea da colagem, a unidade formal pela reunião de fragmentos de papel. Os santos eróticos de Wolney Fernandes alcançam verdadeiramente a unidade perdida pelos séculos de racionalização. A unidade agora é a do desejo. A energia do fragmento encontra maneiras de circular numa totalidade feita de imperfeições.
Aparentemente imbuído pelo mesmo ágon, Wolney Fernandes procura papéis que outrora tiveram significados alheios. Com eles inventa um jogo em que fragmentos de outros suportes encontram-se, sobrepõem-se, entrelaçam-se, dançam um balé repleto – de libido, energia vital. As coisas recortadas são atraídas e mantêm-se em relação de tensão do mesmo modo que os corpos desejantes suspendem por um segundo a realização do ato que logo os dissipará. Dançam até assentarem-se em um todo, nada idealizante, em que meus olhos, por fim, descansam no encontro feliz daquilo cuja vizinhança mal poderia suspeitar. A colagem de Wolney me concede habitar esse átimo do desejo. Nesse lugar, não há o conforto do genuflexório nem o consolo da vela acesa. Essa “igreja” se desmancha a cada verso, a cada citação, a cada nota para se reerguer em outra obra, outro quadro, outro livro.
Do fragmento ao aforismo: “Muitas das obras dos antigos se tornaram fragmentos. Muitas obras modernas já foram escritas como fragmentos” (Friedrich Schlegel, in Athenaum). Tal o trabalho de Wolney Fernandes: fazer do recorte de jornais, livros e revistas a mesma coisa que o escritor faz com a linguagem comum (do mesmo modo, palavras e imagens recortadas são gastas com o passar dos anos, participam de conteúdos prontos, podem ser dadas como mortas), ou seja, nosso artista da colagem é capaz de manipulá-la até encontrar a fronteira esponjosa da cristalização de significados, forçando a abertura dos poros para novos sentidos.
“O todo sem a parte não é todo; a parte sem o todo não é parte; mas se a parte o faz todo, sendo parte, não se diga que é parte sendo o todo” (Gregório M.). O meio ambiente, os espíritos da natureza e os deuses fazem parte da esfera do olhar, da visão, do enxergar. O que somos/vemos/conhecemos é a ponta do iceberg, precisamos mergulhar no mar para encontrar o que se deixar encontrar. Muito bom texto, delicioso! Abraços,