Seymor Levov, o protagonista do romance Pastoral Americana, trabalho que deu ao seu autor, o norte-americano Philip Roth ,o prestigiado Prêmio Pulitzer no final dos anos 1990, é um ser trágico no que há de mais profundo nesse adjetivo quando falamos de literatura. Acometido por desventuras, é um homem que não só é vítima de atos e fatos que o levam para o abismo. Seu infortúnio é maior. Ele leva o abismo dentro de si, ainda que lute e não aceite essa condição – ou seria um destino incontornável? Como vencer na vida se ela é contra você?
Dizendo assim, elaborar esse tipo de criatura não parece tarefa tão complexa. Afinal, a ficção pode beber em inumeráveis fontes da realidade para conceber situações e personagens cuja existência é deplorável e que se mostra fadada ao precipício. Há outras variantes nessa equação, porém. Roth, que morreu no último dia 22 de maio, aos 85 anos de idade, partiu sendo considerado o maior escritor de seu país. Uma nação que pune terrivelmente o fracasso, que se revela impiedoso com os perdedores. Nos EUA, a terra do self-made man, tais pessoas não merecem consideração. Roth fez diferente.
Ele não só transformou esses indivíduos cheios de frustrações e incapazes de lidar com suas vidas que sonhavam ser tranquilas e vitoriosas, mas que são desgraçadas e vulgares, não em exceções deploráveis, mas em regras constantes. O mundo não é cor-de-rosa, portanto. Os sonhos despedaçam-se e os tipos sociais derretem à nossa frente. A sociedade, a mesma que cobra e julga, é, por sua vez, amoral, hipócrita, capciosa. A ambição desse americano nada mais é que a vontade de ser um cidadão que não tem lá grandes qualidades a apresentar. É um erro que fala e vocifera.
Nascido em Newark, região vizinha a Nova York, Roth transferiu para sua prosa elementos de uma vivência que também fez questão de desconstruir, como tantos outros parâmetros da sociedade norte-americana, sempre tão previdente em seus valores. Membro de uma família judia, ele olhou para dentro de sua comunidade em busca de mais pessoas que pudessem ilustrar essa inquietação com fórmulas sociais muito redondas ou metas pessoais manjadas. Já em seu primeiro livro, Adeus, Columbus, ele mostrou que não teria idolatria com ninguém.
Neste trabalho, publicado em 1959, Roth traça um enredo em que personagens revelam seus defeitos e fraquezas o tempo todo. Afinal, são gente, com todas as suas contradições, fantasmas e até virtudes. Só as boas intenções ou os discursos do bem não os redimem. Seus atoleiros são mais profundos. Por essa razão, um de seus livros mais impactantes chama-se, exatamente, O Homem Comum. Em outro de seus trabalhos, Indignação, um romance de formação cheio de dor e fúria, um jovem rapaz vê que suas escolhas sensatas não o imunizam de nada, sobretudo de erros terríveis.
Se um livro leva como título um sentimento tão forte quanto indignação, outro também é nomeado com uma experiência igualmente traumática: Humilhação. Nessa história, um ator experiente entra em crise profissional e pessoal, o que o faz flertar com a ideia do suicídio. Matar-se também é um fracasso; também é uma humilhação. Em O Teatro de Sabbath, o autor surpreende e dá sua visão sobre como trabalhar o sexo em uma narrativa envolvente, mas que ainda traz em si uma semente de desilusão, de infortúnio, de desesperança.
Roth era, acima de tudo, destemido em sua literatura. Complô Contra a América assume tons proféticos ao pensar na eleição de um presidente intolerante, que levaria os EUA para o buraco. O contexto era o pré-Segunda Guerra Mundial, mas a associação feita deste livro com a vitória de Donald Trump foi inevitável. Ermira também destacou essa possível ligação. Em Casei Com Um Comunista, já é o pós-guerra que entra em cena, com a onda de perseguições que varreu os EUA. A obsessão da caça aos comunistas é seu tema e seu alvo.
Philip Roth nunca foi escolhido para ganhar o Nobel de Literatura, ainda que estivesse na ponta da fila nas apostas, ano após ano. Ele não perdeu o prêmio; o prêmio o perdeu. Roth fez jus à melhor tradição da literatura norte-americana. Como Faulkner, mexeu em feridas sagradas. Como Hemingway, não aliviou a mão nas tragédias. Como Saul Bellow , fez os fatos ficarem maiores que os projetos. Muitos o compararam a Kafka, em que o indivíduo é arrastado por uma vida quase nunca recompensadora. Roth, o autor que revelou e trabalhou como poucos esse fato.