John Ford (1894-1973) não é apenas o diretor dos grandes planos e das panorâmicas superlativas. No vale em que filmava, sabia o que a paisagem podia lhe render para a composição de ações espetaculares, a céu aberto, entre elevações rochosas cobertas de vegetação rarefeita. Esse efeito cinematográfico é retórico: ele enaltece o espaço que dá origem ao épico. Em outro polo, é também o diretor dos ambientes íntimos, ou seja, dos planos interiores, fechados, que protegem os personagens contra as hostilidades do mundo exterior. Sobre esses detalhes não é preciso dizer muito: John Ford manipulava, como um mestre, os códigos do gênero, consolidando inevitáveis clichês e fundando a sua estética.
Assim, o território ̶ amplo, vazio, infinito, constituído de montanhas em profundidade de campo ̶ encerra a visão de um mundo deserto e idílico, em oposição aos espaços povoados da casa, onde a história tem o seu centro dramático e, não menos importante, onde se forja a resistência contra o inóspito, que surge abruptamente de fora para provocar o desequilíbrio familiar. Parece que a ideologia do lar inviolável é comum nesse tipo de filme.
Na história do cinema, Rastros de Ódio (1956) é um exemplo bem-sucedido de faroeste em que o território e o lar estão em contraste. Evidentemente, outras oposições poderão ser identificadas. Mas a vastidão física, nesse caso, impõe-se porque é nela que a história também se desenrola; em contrapartida, é no lar que tem início o drama. Quantos faroestes sugerem os mesmos opostos? Não todos, certamente.
Quem assistiu a esse clássico ̶ disponível na internet ̶ lembrar-se-á das privações que Ethan Edwards (John Wayne) sofre ao retornar para a casa do irmão, no Texas, vindo da guerra como soldado derrotado dos Estados Confederados. O reencontro com os seus, depois de longa ausência, é fugaz, porque um incidente perturba o convívio familiar, o que obriga Ethan a cavalgar de novo, dessa vez em outra guerra, a mais imponderável de todas.
Esse incidente é o ponto a partir do qual a narrativa se estrutura, porque o que virá em seguida será uma sequência de eventos, movida pela obstinação e feita de idas e vindas, de enganos e pequenos confortos. O desfecho, com o retorno a um novo lar, agora recuperado com os fragmentos de uma difícil relativização, mostra a grandeza do herói nos filmes edificantes: aceitar a filha do irmão como o outro não branco, que desprezava, com o ódio pelo diferente. Ethan não tem apenas de lutar contra os Comanches ̶ ele precisa resolver sobretudo um conflito, que esgarça a sua alma: reconhecer como membro de sua família aquela que se tornou quase-índia. Esse é o núcleo básico do filme e a segunda guerra que Ethan trava consigo mesmo depois de voltar para o aconchego da casa.
Em seu famoso dicionário, Jean Mitry diz que o faroeste é definido pelo seu pretexto. Para ele, a ação nesse gênero, “situada no Oeste americano, é conseqüência do meio e das condições de existência entre 1840 e 1900”. Essa descrição, sem dúvida, é satisfatória, mas pode ser acrescida de outros pormenores. John Ford, porém, a amplia quando inclui a dimensão psicológica, as relações inter-raciais e a perda da identidade, as quais, na metáfora sobre o mundo que recria, revigora a atualidade do filme e lhe dá surpreendentes significados.
Nos filmes sobre a conquista, John Ford soube contar uma história que iluminou o gênero. Entre a moral puritana e o aprendizado que a longa cavalgada lhe proporcionou, Ethan conseguiu vencer a sua segunda guerra.
No epílogo da narrativa, ao abraçar a sobrinha reencontrada (Natalie Wood), em cena antológica, dizendo “Vamos para casa, Debbye”, ele recupera a sua nação perdida. Em outras palavras, o território abrigará um novo lar, para substituir aquele irremediavelmente desfeito.
Confira abaixo a abertura de Rastros de Ódio: