–Vamos pro Santos Dumont, disse ao taxista.
O voo de retorno a Goiânia estava marcado para 18h55min e eu estava saindo de Laranjeiras, no Rio, a tempo de chegar ao aeroporto uma hora mais cedo. Dava tempo, apesar do trânsito pesado, horário de pico, anoitecendo, as luzes da cidade, despedidas.
– Hoje tem jogo do Flamengo. O senhor torce para que time?
– Ah, não torço mais pra time nenhum, só pra seleção, respondi.
– Mas o senhor já teve algum time.
– É, primeiro Vasco, o time de Barbosa, Augusto e Clarel, Eli, Danilo e Jorge, Tesourinha, Ipojucan, Ademir, Maneca e Chico.
– Puxa, o senhor se lembra, admirou-se.
– Cansado da politicagem no Vasco depois do campeonato de 1949, desisti. Fui largando e aos poucos me chegando pro Flamengo, aquele time de Garcia, Tomires e Pavão, Jadir, Dequinha e Jordan, Joel, Rubens, Índio, Benitez e Zagalo. Mas isso faz muito tempo, muito depois do desastre de 50, quando fizeram aquela crocodilagem com o Barbosa, botaram a culpa toda nele pela derrota de dois a um pro Uruguai, o fatídico gol de Gighia. E pior, não pararam mais de bater, a ponto de ele dizer, já velhinho, cabeça branca, que a sua punição tinha sido tão injusta porque não tinha tempo pra terminar. Já pensou? Castigo eterno!
– É mesmo, concordou. E no Flamengo, se lembra do Adílio, do Andrade, do Leandro, do Zico, da conquista do campeonato mundial de clubes no Japão?
– Claro. Mas você reparou que não tem uma bandeira do Brasil na janela? Olha que nesta semana andei por grande parte da cidade, e neca (isso foi antes do jogo com a Suíça).
– Pois é, a turma tá desanimada, descrente, essa política, o custo de vida, tanta corrupção, disse ele.
–Tá certo, respondi, mas não vamos de novo cair na ilusão de que o futebol só serve pra distrair as pessoas dos verdadeiros problemas. Já tem gente dizendo que o verdadeiro problema não é a corrupção – que deve ser combatida –, mas a escravidão.
Ele ficou calado, como se precisasse de um tempo pra pensar.
– Reclamam, dizendo que jogador ganha muito, mas o que os jogadores produzem de riqueza, e de alegria, pra muita gente.
– É, mas não são todos que ganham bem, tem muito jogador na pior. O senhor falou em escravidão, me lembrei do Afonsinho, o do passe livre, que comprou o próprio passe das mãos dos cartolas. E teve também o Doutor Sócrates da democracia corintiana.
– Pois é, foi a minha vez de concordar.
Uma pausa, e me perguntou se eu já tinha jogado futebol.
– Joguei, fui até profissional, mas por pouco tempo, poucos meses, quando trabalhei em Toledo, sudoeste do Paraná.
– Sabe que eu também tentei, disse ele, mas tive uma contusão no joelho, treinando no Flamengo, e aí fui obrigado a parar. Às vezes, sonho que estou jogando.
– Cara, eu também, respondi. Sonho que estou driblando na entrada da área perto de fazer o gol e … nada, acordo. Ou então sonho com aquelas bolas soltas num pedaço do campo, em zona morta, sem dono, e que a gente tem de disputar na corrida, e a bola vai escapando bem devagarinho e você não chega nela, um inferno.
– Ah, o senhor sonha com isso também? Eu acordo quando faço gol, disse, e emendou outra pergunta. – Diz aí, cinco nomes, dos grandes, que o senhor viu jogar.
Respondi que eram Pelé, Zizinho, Didi, Garrincha, Nilton Santos, ah, são tantos.
– E lá de fora?
– Ah, eu gostava muito do Puskas, conheceu?
– Não.
– Cara, era um meia-esquerda sensacional da seleção húngara, perdemos pra eles num jogo complicado. O cara era major do exército e jogava num time chamado Honved, que chegou a se apresentar no Maracanã, para alegria do Armando Nogueira, se lembra dele?, um cronista esportivo.
– Ah, sei, tinha aquela mesa-redonda na TV, me lembro, tinha ele, o João Saldanha, o Nelson Rodrigues, que falava cada coisa doida! E o senhor, jogava de quê?
– Meia armador, camisa oito ou dez.
– Eu era da defesa, disse ele.
– Se lembra do Leandro do Flamengo?
– Lembro.
– Pois é, meu nome é Leandro por causa dele. Um cracaço, não acha?
– Acho. Foi o teu pai que botou o nome?
– Foi, meu pai jogava, e minha família era de boleiros. O senhor gostava do Romário?
– Gostava, tinha um senso de orientação fantástico.
E falamos ao mesmo tempo que ele jogava sem bola e de repente o gol.
– É, concordei, parecia um jacaré adormecido no meio do jogo, não corria, não se matava atrás da bola, e de repente o bote.
– Não corria, não se matava, e até não treinava, pra que, né?, lembrou.
Fizemos uma pausa. Trânsito congestionado perto do Santos Dumont. Sua atenção se dividia. Puxei um velho mantra, se a gente botasse a mesma competência que temos no futebol e no carnaval, o país já tinha decolado há muito tempo.
– Pior é que é, concordou.
– Porque a gente é alegre mesmo, né, mesmo com toda essa desgraça, continuou.
À medida que nos aproximávamos do aeroporto, dava pra sentir um tantinho de melancolia, aquelas luzes piscando (em inglês fica mais bonito e mais verídico, twilight, do que essa história de crepúsculo, meio sinistro, feio como o diabo). Ele me fez as últimas perguntas, sabendo que vida de chofer de táxi tem muito de coito interrompido e acaba no melhor pedaço, justamente quando o papo esquenta.
– E quais foram suas maiores emoções no futebol?
– Bom, primeiro aquela de subir a rampa da arquibancada e dar de cara com o verdão, o campo aberto, os holofotes acesos, as cores das camisas, eu quase morria de emoção, exagerei dizendo verdade.
– Ah, exclamou, o velho Maracanã que o senhor foi lembrar! Já viu o novo? Tá bonito, mas aquele…
– Me lembro também da Copa de 58, quando começamos a perder o complexo de vira-lata, acrescentei. Não é que eu tenha alguma coisa contra o esperto vira-lata, ele é bonito e forte, e tem jogo de cintura, mas não precisamos do complexo.
Pausa. Chegamos ao desembarque. Enquanto pagava, e ele me ajudava com as malas no bagageiro, inda deu tempo para a última estorinha.
– Eu disse a você que era um armandinho, na posição de meia, mas lá nos anos 50, quando era guri, joguei no time dos meus sonhos, o famoso Onze Cobrinhas escalado pelo grande técnico Silvério. Conhece o Encantado, o subúrbio?
– Claro, onde morava a Aracy de Almeida, onde tem hoje o Engenhão, respondeu.
– Pois é, cara, vinha gente de longe só pra ver o nosso jogo no campo do York. E eu não pegava mais a posição de armador, tinha dois caras muito melhores que eu – o Nilsinho, que dava o drible do elástico, antes do Rivelino ficar famoso, e o Aridauto, camisa dez, esse tinha um pé de pato, de tão largo, que quando ele matava a bola, ela ficava quietinha, paradinha no peito do pé, parecia que morava ali. Pois é, eu só conseguia vaga de ponta, esquerda ou direita, revezando com o Luizinho, rápido como The Flash. Hoje, com dois filhos que veem comigo os jogos da seleção, quando o time falha em querer entrar com bola e tudo (por que não chutam logo da intermediária ou na entrada da área?), eu costumo zoar com eles dizendo que isso, fazer gol na pequena área, é só pros Onze Cobrinhas… Eles sempre respondem: ih, lá vem ele, ó o cara…
Nos despedimos, Leandro me desejou boa viagem, vai com Deus, meus olhos quentes e úmidos.
Eu tava lendo o texto e me bateu uma nostalgia daquelas, Rio de Janeiro, Maracanã, futebol…Eis que o cara ataca de Onze Cobrinhas. Não podia deixar escapar essa, hein, pai ? Ri muito aqui. Belo texto. Parabéns e um beijo do caçula!