[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
Vapor barato
Oh, sim
eu estou tão cansado
mas não pra dizer
que não acredito mais em você
com minhas calças vermelhas
meu casaco de general
cheio de anéis
vou
descendo
por todas as ruas
e vou tomar aquele velho navio
eu não preciso de muito dinheiro
graças a Deus
e não me importa
Oh minha honey baby
baby honey baby
Oh, sim
eu estou tão cansado
mas não pra dizer
que estou indo embora
talvez eu volte
um dia eu volto
quem sabe?
mas eu quero esquecê-la
eu preciso
Oh minha grande
Oh minha pequena
Oh minha grande obsessão
Oh minha honey baby
honey baby
Musicado por Jards Macalé
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[2]
Minha alegria
minha alegria permanece eternidade soterrada
e só sobe para a superfície
através dos tubos alquímicos
e não da causalidade natural.
ela é filha bastarda do desvio e da desgraça,
minha alegria:
um diamante gerado pela combustão,
como rescaldo final de incêndio.
1995
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[3]
Orapronobis
(Tira-teima da cidadezinha de Tiradentes)
Café coado.
Cafungo minha dose diária de MURILO e DRUMMOND.
Lápis de ponta fina.
Lá detrás daquela serra
Estamparam um desenho de TARSILA na paisagem.
Menino que pega ovo no ninho de seriema.
Pessoas sentadas nos bancos de calcário
Dão a vida por um dedo de prosa.
Cada vereador deposita na mesa da câmara
A grosa de pássaros-pretos que conseguiu matar
Árdua labuta pra hoje em dia
Pois quase já não há
Pássaros-pretos no lugar.
De tarde gritaria das maritacas
Encobre o piano arpejando o Noturno de CHOPIN.
Bêbado escornado no banco da praça.
Orlando Curió cisma um rabo de sereia do mar debuxado
no lombo do seu cavalo.
A meia-lua
E a estrela preta
De oito pontas
Do teto da igreja
Do Rosário dos Pretos.
Que luz desponta
Da meia-lua
E que centelha
Da estrela preta de oito pontas
Do teto
Da igreja do Rosário dos Pretos?
Pra quem aponta
A luz da meia-lua
E pra quem cintila
Preta de oito pontas
A estrela desenhada no teto
Da igreja do Rosário dos Pretos?
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[4]
Arte anti-hipnótica
Espia a flor da aurora que já vem raiando!
Mal a barra do dia rompia
saía pra rua
a caçar trabalho.
Lavrador desempregado
Morador de casebre de pau a pique
3 cômodos
em Araçatuba
cumpre pena de prisão domiciliar
por furtos de luz
do programa de energia rural
para a população de baixa renda.
4 lâmpadas
sendo que duas queimadas
e uma geladeira imprestável.
Sem dinheiro para pagar a conta
teve o marcador de quilowatts arrancado.
Um compadre compadecido armou o “gato”.
70 anos incompletos.
Não compareceu ao fórum
pois só possuía chinelo
despossuía sapato e roupa decente.
Aqui firma e dá fé um Bertold Brecht de arrabalde:
o sumo do real extraído da notícia de jornal:
a arte ilusória
idílica
hipnótica
do fait divers.
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[5]
Tácito
Seguia o ano seu curso
quando doze cidades célebres da Ásia Menor
ficaram de todo arrasadas por um terremoto noturno,
tanto mais letal quanto mais chã a esperança.
Nem mesmo de bom proveito serviu o refúgio
dos campos,
a que em tais casos se costuma recorrer:
porque as bocarras da terra engoliam seus miseráveis habitantes.
Narra-se que as montanhas imensas se esparramaram
em vastas planícies;
que as planícies vastas se converteram
em montanhas imensas;
que altas labaredas de fogo sapecavam a periferia
e o centro dos escombros
entre o espesso betume e a lava e o súlfur que arde.
Nem o de cem olhos, Argos nenhum,
Discerneria crepúsculo, noite, aurora, manhã, tarde.
Perfil
Waly Dias Salomão nasceu em Jequié (BA) no dia 3 de setembro de 1943 e morreu no Rio de Janeiro em 5 de maio de 2003, aos 59 anos. Graduou-se em Direito na Universidade Federal da Bahia, onde também estudou Teatro. De 1974 a 1975, fez curso de Inglês na Universidade Columbia, de Nova York. Ocupou cargo público na área de cultura. Esteve associado a vários movimentos culturais nas décadas de 1960 e 1970, entre os quais a Tropicália. Muitos de seus poemas foram musicados por Jards Macalé, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Moraes Moreira, João Bosco etc. No cinema, interpretou o poeta Gregório de Matos, em filme homônimo de Ana Carolina, produzido em 2002. Escreveu os seguintes livros: Me segura qu’eu vou dar um troço (1972), Gigolô de bibelôs (1983), Poemas de armarinho de miudezas (1993), Hélio Oiticica: Qual é o parangolé? (1996), Algaravias: Câmara de ecos (1996), Lábia (1998), Tarifa de embarque (2000), Pescados vivos (2004, póstumo). É considerado um autor original pelo modo como incorpora a tradição na sua poesia. Por ser dinâmica, a sua escrita explora recursos gráficos com inventividade, ao mesmo tempo em que explora um léxico variado, construindo uma sintaxe com característica própria. Os seus poemas, com forte apelo subjetivo, são elaborados segundo a vontade e o desejo, os quais provocam, conforme lembra Francisco Alvim, “a paródia que não é imitativa”. É também considerado um autor de difícil classificação. A sua poesia está marcada pelo trocadilho, pelas ironias, pelas hipérboles e por metáforas desconcertantes.
Confira abaixo vídeo com Jards Macalé interpretando a canção Vapor Barato.