Ela é mãe de família. Ela é uma profissional respeitada. Ela faz caridade em bingos e bazares. Ela possui as melhores intenções do mundo. Ela teve acesso a melhor educação e fala três idiomas. Ela é viajada e cultiva uma grande curiosidade pelo mundo. Mas ela fura a fila. E ela acha-se mais importante do que aqueles que aguardam, pacientemente, sua vez de ser atendidos. E ela acredita ter a preferência, onde quer que chegue, no momento que desejar. E ela crê que pode distribuir ordens que serão prontamente acatadas. E ela grita se for contestada nessa sua deplorável postura.
Em minha última viagem, fui sorteado e topei com ela. Sim, esta senhora de meia-idade, classe média alta, ostentando roupas e acessórios de grife e que sequer cogitou esperar três minutos para obter seu refrescante suco de laranja. Na fila de um bufê, ela subverteu a ordem ali estabelecida e se dirigiu ao atendente que servia bebidas sem lançar um olhar sequer a quem tinha o direito de receber seu refresco antes. “Me gustaria de un jugo de naranja”, disparou ela, em excelente portunhol. Sim, era uma brasileira em águas caribenhas fazendo soar sua voz rouca de fumante.
O jovem atendente, educadamente, esclareceu: “senhora, a fila começa ali do outro lado”. A resposta veio prontamente: “serve logo!” Não era mais um pedido; agora era uma ordem, já sem o esforço do híbrido portunhol. O rapaz repetiu: “Senhora, há uma fila e ela começa ali.” E ela voltou à carga: “serve logo meu suco, vai”. Este humilde cronista, o terceiro da fila de cinco pessoas, resolveu reforçar a fala do bartender: “Existe uma fila, senhora, e estamos todos esperando nossa vez. A senhora entrou pelo lado errado.” A distinta mulher, de imediato, se transformou.
“Você é muito mal educado! Eu estou pagando caro para estar aqui e fico onde quiser”, disse ela, a mesma pessoa que se mostra nas redes sociais tão sociável e civilizada. Eu retruquei: “minha senhora, todos nós estamos pagando para estar aqui e mal educada está sendo a senhora furando a fila”. Aí a respeitável cidadã de bem perdeu de vez as estribeiras. Aos gritos, armou o seu barraco. “Eu sou maior de idade! Não preciso que ninguém me diga o que fazer! Seu mal educado!” E o presente cronista, também já sem paciência com a fura-fila, lhe devolveu. “Sua grosseira!”
“É triste quando nos deparamos com quem se utiliza de frívolos poderes, absolutamente temporários e frágeis, e se colocam em um lugar de desrespeito ao semelhante, de opressão, de incivilidade.”
O coitado do atendente serviu o diabo do “jugo de naranja” da zelosa mãe de família, que arca com todos os seus compromissos e que talvez até vá à missa todos os domingos rezar por um país melhor. Sim, ela conseguiu ser servida antes de outras pessoas que estavam na fila – não antes de mim, hehe – e se sentou com sua família-modelo, um casal de filhos que não saíam do celular e que, dado o exemplo que recebem, vão furar muitas filas no futuro. Na hora, garrei um ódio daquela figura e amaldiçoei até sua quinta geração. Agora, penso diferente. Ela é uma pessoa digna de pena.
Merece nossa misericórdia alguém que deve ter trabalhado bastante para chegar a uma posição mais confortável, a ponto de poder fazer boas viagens e conhecer novos lugares, mas que usa tais conquistas para se afirmar da pior maneira possível. É triste quando nos deparamos com quem se utiliza de frívolos poderes, absolutamente temporários e frágeis, e se colocam em um lugar de desrespeito ao semelhante, de opressão, de incivilidade. Chega a ser grotesco quando assistimos demônios eclodindo de personalidades que se apresentam como acima de qualquer confusão.
Nunca mais verei aquela mulher da fila – assim espero. E desejo sorte e parcimônia para quem tiver o azar de cruzar com ela em algum outro lugar. Caso seja contrariada ou não tenha suas ordens obedecidas, poderá gritar, revelando uma de suas facetas mais deprimentes. Mas outras mulheres e homens da fila estão vagando por aí, desfilando sua empáfia, sua arrogância, sua mentalidade senhorial nas circunstâncias mais triviais, na eterna tentativa de ofender e humilhar. Cuidado com esse pessoal, mas não o ignore. Eles podem achar que sim, mas não são melhores que ninguém.
Excelente texto! Infelizmente existem muitas pessoas assim. Me preocupa muito o exemplo que dão aos seus filhos…
Pessoas que necessitam, sobretudo, de demonstrar aos outros que têm “poder”, porque lhes falta autoestima, autoconfiança, segurança, capacidades, mérito, talentos, empatia e principalmente educação.