Muito antes de os urubus aparecerem na casa e pousarem no telhado, Rosângela e eu estávamos na varanda apreciando um vinho e admirando a noite que se estendia com as suas sombras em direção ao João Leite, lá embaixo, um fundo de vale do ribeirão. Nessa época, Tom-Tom ainda não tinha chegado, ainda filhotinho, para ocupar de vez a casa e os nossos corações.
A noite era escura, mas havia uma luz pálida, de modo que dava para enxergar o muro que divisava o terreno, local onde as árvores cresciam, umas mais rápidas, outras mais lentas, do jeito que a natureza costuma tocar o seu ritmo.
Nessa noite de pequenos eventos que engrandecem o espírito, um vaga-lume acendeu a sua lanterna e, logo em seguida, outro respondeu mais adiante e depois outro e mais outro, a ponto de parecer que as estrelas tinham caído no quintal. E aí, sem mais nem menos, veio-me à lembrança uma canção que eu cantava com os meus colegas quando era menino:
“Vaga-lume tem tem/ Seu pai tá aqui/ Sua mãe, também” − canção infantil de uma época distante que cantávamos tentando atraí-los para depois prendê-los dentro de um vidro transparente. Devo, portanto, a essas lucernas o meu primeiro deslumbramento com a noite, um encantamento que carregarei comigo até que eu me transforme, um dia, numa luzinha que acenderá e apagará na memória das pessoas que me amaram.
Não me recordo agora que tipo de música ouvíamos na varanda, mas com certeza alguém tocava ou cantava, pois ela é o espaço da casa onde gostamos de ficar à noite para conversar, beber vinho e ouvir música.
De repente, se ela falava, calou-se; se eu não passei mais a ouvi-la foi porque senti o pouso abrupto de um pássaro ao meu lado. Porque se Rosângela calou-se foi por causa de um canário, atordoado, que voou para a varanda e pousou no banco onde estávamos. Depois, menos desorientado, saltou para o piso e lá permaneceu quietinho por um tempo, escondendo-se em seguida debaixo do banco.
Não lembro se um de nós falou ou exclamou − mas sei que me abaixei e peguei a avezinha. E aí, nesse pormenor, a lembrança é viva: os seus olhinhos estavam dilatados, o seu corpinho tremia e eu sentia o seu coraçãozinho, que pulsava acelerado. Por acaso, tinha nas mãos um animalzinho cheio de terror, fora de seu lugar.
Segurando-o cuidadosamente, notei que, no alto de sua cabecinha, em volta de seus olhos, a sua penugem era de tom vermelho, seguida de um amarelo-olivácea que se distribuía de modo harmonioso ao longo do seu corpinho.
Eu tinha entre as mãos, protegido, um canário-da-terra. Rosângela então disse:
“Acho que ele está assustado porque vi, há pouco, um bicho passar correndo pela grama.”
“Seria um gambá?” − perguntei por perguntar, sem muita convicção. E depois indaguei de novo, mudando, porém, dessa vez, o vilão:
“Ou seria uma coruja em voo rasante?”
O canarinho, finalmente, acalmou-se. Rosângela então levantou-se e disse que ia buscar água. Em seguida, umedeceu a sua cabecinha. Após algum tempo, quando parecia recuperado, eu me levantei e fui até a ameixeira que fica em frente à varanda. Escolhi o galho mais seguro e protegido e coloquei-o entre as folhas, desejando-lhe boa sorte:
“Obaluaiê te proteja, canarinho!”
Durante algum tempo, fiquei observando o galho onde eu o tinha deixado. Como nada aconteceu, acredito que ele deva ter pernoitado ali e, na aurora, voado à procura de seus companheiros.
Já de manhã, quando saí para o quintal, havia canários voando para todos os lados. Entre tantos, procurei aquele que tinha aparecido na varanda. Eu sabia que jamais iria revê-lo, pois era apenas mais um no meio de tantos canários, mais um passarinho misturado às centenas de outras espécies de avezinhas, na turba que costumam fazer no momento em que saem a voar saudando a manhã.
Enquanto jogava quirera de milho no comedouro, eu só pensava nesse canarinho que na noite anterior, sentindo-se ameaçado, procurara abrigo na varanda.
Onde estaria ele agora, belo passarinho, nessa manhã alegre e translúcida?
Crônica linda! De um Luiz que eu conheci há muitos anos. Cheio de ternura pelo mundo, seus vaga-lumes e passarinhos. Amei!
Leitura fácil e corrente, cheia de atrativos. Parabéns. Procurarei outras crônica.