Dei com a foto de Toninho Horta – 69 anos, vai fazer 70 em Tóquio, os japoneses insistem preparando a festa em dezembro – na primeira página do segundo caderno de O Globo, matéria assinada por Arnaldo Bloch. Cara, que chance. Eu não conhecia a casa de jazz na Lagoa, nem o lugar chamado Lagoon, um híbrido esquisitinho de shopping center, casa de cultura, restaurante et cetera e tal.
Blue Note fica no 3º andar. Ligação direta com o jazz de Nova York. Eu estava perambulando pela Visconde de Pirajá, Ipanema, entrei na Livraria da Travessa, olhando livros e discos – comprei Jacques, o Sofista, de Barbara Cassin, filósofa e filóloga francesa que esmiúça o dito lacaniano (“O psicanalista é a presença do sofista em nossa época, mas com um outro estatuto”) –, me espantei com os preços do vinil Bossa Negra com Diogo Nogueira e Hamilton de Holanda, sucesso internacional, continuação dos Afro-sambas de Baden e Vinicius, e me esqueci do endereço do Blue Note. Perguntei ao vendedor – a vantagem de não usar celular é que você fala com as pessoas, hábito em desuso – e ele me disse em segundos – vantagem de usar o celular – Avenida Borges de Medeiros, 1424.
Já perdi a trilha do Rio depois de 30 anos em Goiânia? O fato é que estava ali, sentadinho na penumbra, bebericando água mineral e ouvindo um som do cacete, enquanto seu lobo não vinha, porque o show não era de Toninho, e sim do baixista Gastão Villeroy que o convidou para uma canja. Ah, foi por isso que ele não tocou muito, comentei com Arnaldo Bloch, no final do show. – É – disse ele – Toninho só tava de onda. – Pode ser, concordei. Por isso é que não ouvi sua guitarra em Beijo Partido, Aqui, Ó, Meu Canário Vizinho Azul, nem seu baixo em Trem de Doido, composição de Lô e Marcio Borges, e tantas outras maravilhas desde o Clube da Esquina. Em compensação, rebentou com Aquelas Coisas Todas.
Toninho estava alegre, conversou com a plateia, e disse que não havia trazido CDs para vender, e que finalmente seu songbook ficara pronto e pesava uns dois quilos. – Eu quero, gritou alguém da plateia. – Ah, mas eu só trouxe quatro, de modo que vou leiloar, brincou. Olhei em volta, Tania Alves sorrindo, ela parece que também gosta desse guitarrista que conquista o mundo comemorando 50 anos de carreira.
“Toninho combina doçura, gentileza, simplicidade e técnica maravilhosa, com saber enciclopédico que jamais usa para se exibir, mas em benefício da musicalidade”, disse o guitarrista americano Stanley Jordan, citado na matéria de Arnaldo Bloch.
Ele “desafia a gravidade”, disse Pat Metheny – ícone da guitarra fusion, segundo a matéria, referindo-se às progressões de acordes e solos que podem ser ouvidos nos acompanhamentos de Dori Caymmi, Edu Lobo, Hermeto Pascoal, Wayne Shorter, Keith Jarret, George Benson. Toninho se animou até para cantar em inglês alguns clássicos da canção americana em Standars and Stories, anunciado para breve.
Outra novidade, segundo Arnaldo, é o CD duplo Belo Horizonte: no disco A, Belo, são clássicos do guitarrista em novas versões, e no disco B, Horizonte, só instrumentais e inéditas! O mineirinho não para. Está procurando editor para um compêndio bilíngue da música brasileira nos últimos 150 anos, que Arnaldo chama de o “Livrão” e já conta com 2.004 páginas, 700 músicas, biografias e partituras.
Toninho está pensando em escrever para orquestra, depois da festa em Tóquio, quando pretende descansar. Já sofreu uma crise de estresse, ficou dois meses de cama, tratando-se com acupuntura e homeopatia. Critica a internet que, segundo ele, distorceu tudo. “A garotada não sabe quem foi Dorival Caymmi ou Tom Jobim. Só quem tem pais que gostam da boa música consegue ver um horizonte além do sertanejo universitário e do pagode.” Ele também critica os músicos contemporâneos por não terem a experiência dos “palcos intimistas, clubes de jazz e inferninhos, pois estão mais preocupados em estudar do que em tocar, e ficam atrás de um excesso de virtuosismo”.
Toninho Horta diz que não teve escola. “Fiz só umas aulas de teoria e solfejo. Quis estudar na Julliard, em Nova York, mas não tinha a base acadêmica.” Arnaldo Bloch toma partido e diz que “ainda bem”, porque “agora, é o pessoal das grandes escolas que tem que se virar para estudar Toninho. Ano passado, foi homenageado pela Berklee, em Boston”. E Toninho se comove: “Uma orquestra com 26 estudantes de 19 nacionalidades me agraciou com um concerto de 12 músicas minhas. Uma coisa linda”.
Coisa parecida foi relatada pela violonista, cantora e compositora Joyce Moreno. No programa de TV Um Café Lá em Casa, apresentado pelo violonista Nelson Faria, Joyce disse que queria estudar numa escola de música popular no Brasil, para ter a tal base acadêmica, mas não havia isso em sua época. Então, desistiu e se dedicou à composição. Anos depois, foi chamada pela mesma escola Berklee, para “explicar” a sua música, tão interessante para os americanos, que sabem o que é bom, e empurram o seu lixo goela abaixo das rádios brasileiras.
Outro exemplo é Moacir Santos. O trumpetista Winton Marsalis, que também é diretor musical do Lincoln Jazz Center de Nova York, organizou um show em que só se tocou a música de Moacir Santos, homenageado por músicos americanos que o chamam de “o Duke Ellington brasileiro”. A flautista Andrea Ernest Dias me disse por e-mail que vai apresentar no fim do ano sua nova pesquisa sobre Moacir Santos com a Orquestra Sinfônica Nacional.
“Trata-se de arranjos originais do maestro na Rádio Nacional. Os concertos serão em 15/12 na Universidade Federal Fluminense e 16/12 na Sala Cecilia Meireles. Descobri coisas incríveis dele no acervo do MIS-RJ. Vai ser um concerto especial, boleros, sambas, sambas-canção, baladas, beguines, temas de filmes hollywoodianos, etc. Infelizmente dessa vez não terei nenhum patrocínio, estou movida pela minha vontade e amor. Mas tenho a parceria da orquestra, o que já é muito significativo no brasil de hoje (com minúscula mesmo…). Ao menos iremos ouvir essa música ao vivo!”
Toninho Horta está entre os 74 guitarristas mais importantes do último século, diz Arnaldo Bloch, lembrando que ele tem música na compilação Progressions: 100 Years of Jazz Guitar (Sony-BMG, 2005), “ao lado de Hendrix, McLaughlin e todo o leque dos maiorais”.
Por que esses músicos brasileiros não são tocados nas rádios brasileiras?
Me lembrei de Trem de Doido, do Clube da Esquina, de Lô Borges e Márcio Borges. O baixo é de Toninho Horta.
− Noite azul, pedra e chão
Amigos num hotel
Muito além do céu
Nada a temer, nada a conquistar
Depois que esse trem começar a andar, andar
Deixando pelo chão os ratos mortos na praça do mercado
Quero estar onde estão
Os sonhos desse hotel
Muito além do céu
Nada a temer, nada a combinar
Na hora de achar o meu lugar no trem
E não sentir pavor dos ratos soltos na praça minha casa
Não precisa ir muito além dessa estrada
Os ratos não sabem morrer na calçada
É hora de você achar o trem
E não sentir pavor dos ratos soltos na casa
Sua casa.