Este ano (2018) comemora-se o centenário de Ingmar Bergman. Para homenageá-lo com a análise de uma de suas produções, confesso que inicialmente passei por um dilema, o da escolha de escrever sobre apenas uma: O Sétimo Selo, entre tantos dos seus filmes marcantes. A começarmos pelo título, percebemos a alusão à passagem do livro do Apocalipse, trecho bíblico no qual os sete anjos descem dos céus trazendo terríveis revelações para aqueles que aguardam o Juízo Final. Próximo disso, O Sétimo Selo é representado na visão do diretor escandinavo como a ira de Deus que chega ao mundo pela peste negra – a terrível epidemia que matou milhões de pessoas na Idade Média.
Embora vejamos no título da obra uma menção religiosa, não nos enganemos, pois Bergman nos traz com essa história as seguintes indagações: afinal, Deus existe? Como de fato atestar a sua existência numa época de sofrimento e destruição? Para entendermos essa provocação, vale aprofundarmo-nos em algumas das passagens do filme, no propósito de melhor elucidarmos o olhar do cineasta diante das questões levantadas.
A história se passa na Suécia, durante o período medieval. O retorno para casa pretendido pelo protagonista Antonius Block, após o término da Guerra das Cruzadas, expõe em praticamente todo o transcorrer do filme um ambiente sombrio e desolador. Historicamente, vale lembrarmos que as Cruzadas foram um movimento militar, organizado pela Igreja Católica entre os séculos XI e XIII, juntamente com os nobres medievais, que partiram da Europa Ocidental em direção à cidade de Jerusalém. Tendo em vista o fato de a Terra Santa pertencer aos turcos, a intenção dos cruzados era invadi-la a fim de que retornasse aos domínios do mundo cristão, pois, para os católicos, aquele território sagrado representava nada menos do que o local onde Jesus Cristo teria, além de ser crucificado, se notabilizado por várias pregações e pela realização de diversos milagres.
Assim, mais do que uma guerra de interesse territorialista ou de imposições religiosas, as Cruzadas também representavam um ato de peregrinação e de purificação dos pecados em nome da fé cristã. Com o sacrifício empenhado durante as batalhas sangrentas, desde que estivessem sob a chancela de um deus salvador, os cristãos aumentariam, desse modo, as chances da redenção dos pecados e a conquista da vida eterna.
Antonius Block, protagonista da obra, é submetido a ininterruptas indagações, porém, suas reflexões acerca da miséria humana o levam a uma dolorosa angústia pela falta de respostas. Como Deus, um Ser infinitamente belo e perfeito, permitiria tanto sofrimento? Seu país estava devastado pela peste negra; havia fome e morte por vários lugares onde passava. O problema parecerá ainda maior quando o personagem recebe a visita do Anjo da Morte, algo que representa não somente a tormenta diante do desconhecido, mas a inenarrável frustração de chegar ao fim da existência sem ao menos conseguir alcançar a tranquilizante resposta sobre o significado da vida. A única escapatória encontrada pelo nobre cavaleiro, a fim de viver por mais tempo e quem sabe então obter as respostas por ele procuradas, foi propor à Morte o desafio de uma partida de xadrez.
A disputa não se dará num só momento. Ela inicia, prolongando-se entre uma cena e outra, como na hora em que Block, na procura por Deus na capela, acaba sem querer entregando à Morte a sua próxima jogada, na ingênua esperança de derrotá-la. Depreendemos disto a onipotência da Morte, bem como o quanto as tentativas de qualquer um de nós escaparmos de seus desígnios fazem-se desesperançosos. Diferentemente da dúvida que persegue o cavaleiro ao longo da película, notamos na perturbadora cena da procissão, que abruptamente interrompe o espetáculo dos artistas mambembes, vários crentes flagelantes que pareciam ter encontrado Deus por meio da submissão ao flagelo e das penitências causadas pelo sentimento da culpa. O que não dizer ainda do olhar aterrorizante de Block dirigido à mulher prestes a ser queimada por conta da acusação de bruxaria: “O que ela vê? Quem receberá sua alma? Os anjos, Deus, o diabo, ou simplesmente o vazio?” Nesse caso, não haveria o supraterreno, já que Deus ainda na forma invisível castiga o homem por causa da sua natureza pecadora. Daí a necessidade dos açoites contra o próprio corpo como modo de contentar a esse deus-juiz, que só assim concede aos ímpios a purificação espiritual e o consolo eterno.
O Sétimo Selo representa um trabalho de cunho existencial, o que nos permite interpretá-lo sob inúmeras possibilidades. Portanto, o momento em que Block convida os artistas para o acompanharem junto de seu escudeiro Jons e da mulher silenciosa rumo ao castelo onde morava pode nos revelar a profundidade, tão mística quanto alegórica pretendida pelo diretor. Percebemos o casal de artistas Mia e Jof, juntamente com seu bebê representando algo próximo da “Sagrada Família”. Porém, ao invés da conotação religiosa, de costume abordada entre os cristãos, Bergman nos oferece outra imagem: a da dimensão artística, simbolizada na forma ingênua, alegre e descompromissada como vivia o casal de personagens – certamente, as condições necessárias para suportar as vicissitudes da condição humana.
Jof, ao ser capaz de enxergar Block debaixo de uma árvore jogando xadrez com o Anjo da Morte, imediatamente avisa Mia para que fujam às pressas daquele lugar. Propositadamente ou não, a cena nos remete a outra história parecida, encontrada no livro do Evangelho de Mateus (2:13-23), na qual José, pai de Jesus, logo após uma revelação, persuade Maria para que fujam de Belém para o Egito. Entretanto, Bergman, desta vez, coloca a arte acima da fé – a autêntica forma de redenção dos pecados do mundo, esquecendo-os, ou reconfigurando-os, sempre de acordo com os seus interesses artísticos. Hipótese fortalecida numa das cenas finais, quando o casal de artistas e seu filho tornam-se os únicos personagens poupados da implacável perseguição do Anjo da Morte.
Por fim, depois de dez anos, Antonius Block chega ao local de destino. Agora, encontra-se na companhia de sua esposa que o aguardava, de seu escudeiro, da mulher silenciosa, do madeireiro e de Lisa, a esposa infiel. Nesse instante, as personagens estavam sentadas à mesa, no aguardo de algo que parecia iminente. Em seguida, o protagonista novamente busca numa última oração a resposta divina nunca encontrada. Após isso, a Morte surge na sala, com sua habitual vestimenta preta, ordenando a todos que durante a travessia para o além-mundo se deem as mãos e que atravessem num tipo de dança macabra para a região dos mortos. Desse modo, a obra de Bergman indica que a morte vale para todos, acima das diferenças de classe, de gênero, de título ou mesmo não importando que sejamos, no final das contas, pessoas boas ou más.
O cineasta escandinavo, nada diferente de outras de suas produções, propõe em O Sétimo Selo uma história autobiográfica, já que a morte para ele sempre foi ao mesmo tempo objeto de fascínio e temor. Mas, a partir do filme, o que podemos depreender a respeito desse fenômeno? É certo concluirmos que a morte é o destino inevitável que cedo ou tarde alcançaremos algum dia. Contudo, apenas nós, seres humanos, temos plena consciência desse acontecimento. Tamanho episódio tem motivado homens de diferentes credos a criarem formas de significar ou de fundamentar a existência, pois o pavor da finitude da vida nos levaria à crença consoladora de um mundo supraterreno, repleto de recompensas para onde iremos, caso cumpramos as exigências emanadas de algum deus transcendente.
Há um problema nisso, que tem a ver com a falta de garantias de que realmente existe um plano metafísico à nossa espera. Talvez Block, além da procura por respostas que dessem sentido à vida, também estivesse atrás da garantia de haver algum mundo melhor do que esse. Por isso, o filósofo francês Jean-Paul Sartre o define como alguém movido por má-fé, uma vez que o ato involuntário de negar a vida impede o personagem de ter consciência de uma existência predecessora da essência.
Em suma, Bergman propõe através da obra O Sétimo Selo o resgate da consciência da morte, entretanto, esta consciência jamais deve ser entendida como simples pretensão pessimista daqueles que vivem atormentados por ela, já que isso acabaria nos levando à paralisia da vida. Por isso, ao tomarmos certos valores prioritários, a exemplo dos bens materiais, do prestígio e da riqueza, é comum ao mesmo instante tornarmos a reflexão acerca da mortalidade como coisa sem importância. Mas, na verdade, quando assumimos de maneira lúcida a finitude da vida, também somos capazes de reavaliar nossas ações e, dessa forma, atuar diferentemente na escolha de princípios. Postura que independe da consciência de nossa solidão ou da terrível sobreposição do mundo material diante das esperanças metafísicas de um dia termos as respostas para o sentido da vida.