− Conte-me tudo, Andrea (embora saiba que não há palavras para tanto). E ela desabafou: – Bem, eu irei tocar, além de ter inventado toda essa folia.
A flautista e pesquisadora Andrea Ernest Dias idealizou, fez a curadoria e ainda toca no concerto Moacir Santos Sinfônico, neste sábado, 15, no Rio de Janeiro, descrito no release que ela me mandou como “um mergulho na sonoridade musical que encantou o Brasil pelas ondas da Rádio Nacional, nas décadas de 1950 e 1960”.
São orquestrações originais do maestro, compositor, arranjador e saxofonista Moacir Santos, o único maestro negro da emissora. Pela primeira vez em mais de cinco décadas vêm a público as orquestrações escritas por Moacir Santos no tempo em que trabalhou na Rádio Nacional, quando escreveu arranjos para Marlene, Emilinha, Lúcio Alves e Orlando Silva, entre muitas outras estrelas.
– O pernambucano Moacir Santos chegou ao Rio de Janeiro em 1948, com 22 anos de idade, e logo foi trabalhar na Rádio Nacional como saxofonista – registra a pesquisadora. – Em 1951, participou do programa Quando os Maestros se Encontram, uma espécie de concurso ao vivo de maestros, apresentando duas orquestrações – uma composição sua, Melodia para Trompa, e Na Baixa do Sapateiro, de Ary Barroso. Os arranjos foram aprovadíssimos e o jovem passou a fazer parte do prestigiado grupo de regentes e orquestradores da PRE-8, junto com feras como Radamés Gnattali e Lyrio Panicalli. Até 1967, escreveu mais de 300 arranjos e orquestrações para os programas e artistas de lá.
A Era de Ouro da Rádio Nacional chega ao fim, e em meados dos anos 60, a carreira de Moacir Santos toma outros caminhos, diz Andrea. Moacir lançou Coisas, o hoje lendário disco da também lendária gravadora Elenco. Nele, o compositor apresentou uma originalíssima mistura de música afro-brasileira com o jazz. O menino pobre, preto, tardiamente alfabetizado, saiu do interiorzão de Pernambuco, desceu pro Rio e de repente estava dando aulas em prestigiosa escola de música nos Estados Unidos. Lá viveu por 40 anos, consolidando uma carreira internacional de prestígio como compositor, orquestrador e inventor de uma nova paisagem musical que não para de nos encantar.
As centenas de partituras de seu tempo de rádio ficaram guardadas em alguma gaveta até que… chegaram às mãos de Andrea. E ela se lembra que depois de participar como flautista do projeto Ouro Negro, que resgatou seu trabalho de compositor e arranjador, “escolhi a obra do maestro para ser tema de minha tese de doutorado na Escola de Música da Universidade Federal da Bahia. Defendida em 2010, a tese se tornou um livro, já na segunda edição: Moacir Santos, ou os caminhos de um músico brasileiro (Ed. Folha Seca/Cepe, 2014)”.
− Também realizei, em 2013 e 2014, duas edições do Festival Moacir Santos, que reuniu músicos brasileiros e norte-americanos em torno da obra do maestro, escreveu a flautista.
E eu me lembro que um dos músicos foi Wynton Marsalis, o trompetista que também já gravou música de Moacir, como o solo que fez para Rota Infinita (com aquele sinalzinho do oito deitado) para o CD Moacir Santos/ Choros & Alegria. O release da apresentação no Lincoln Center em Nova York chamou Moacir de “o Duke Ellington brasileiro”. E me lembro também que um dos depoimentos marcantes do DVD Ouro Negro foi quando João Bosco admitiu uma sensação de perda por só tão tarde ter sido apresentado à música de Moacir.
– Durante minha pesquisa – continua Andrea – tive acesso a essas partituras, que estavam guardadas em silêncio havia décadas, nos arquivos do Museu da Imagem e do Som, no Rio de Janeiro. A maior parte delas só havia sido ouvida uma vez, ao vivo, durante o burburinho da programação da Rádio Nacional. Quem ouviu, naquela época, ouviu. Quem não ouviu terá oportunidade de ouvir agora. São partituras muito ricas de ideias, verdadeiras aulas de orquestração, que mereciam voltar à vida. Aí nasceu o projeto Moacir Santos Sinfônico.
Diz ainda o release que o concerto Moacir Santos Sinfônico tem formato inspirado nos antigos programas de auditório da PRE-8. Programa de auditório! Amarcord, eu também me lembro. Minha mãe Maria Luiza e minha madrinha Hedinar Martins (irmã de Herivelto e líder do conjunto vocal As Três Marias) me pegavam pela mão e me arrastavam para os programas da Rádio Nacional ou da Rádio Tupi, na Praça Mauá, uma emissora perto da outra, um ou dois quarteirões de distância, de modo que íamos a pé. Fazendo cara de docemente constrangido, era aquilo mesmo que eu queria, embora, às vezes, me tirassem da minha pelada, sagrada. Duas oficiantes, dois cultos. Minha mãe me iniciou no cinema, o primeiro filme foi O Rastro da Bruxa Vermelha, com John Wayne quase morrendo sufocado dentro de um escafandro. Minha madrinha, nos programas de auditório da Nacional e da Tupi. Minha mãe, no auditório da Rádio Mayrink Veiga, também por ali, pertinho, e no da Rádio Nacional, Mater et Magistra, não por acaso, que do destino ninguém foge (filme com Humphrey Bogart… e não foi à toa que me tornei crítico de cinema), mas, para contrabalançar essas folias maternas, esclareço pra mim mesmo que meu mais fundo interesse por música foi transmitido por meu pai Afranio, le son–du–père.
Digressões, devaneios, fantasias ou lembranças encobridoras, sustento que o trabalho primoroso de Andrea Ernest Dias é (ao menos para mim) a garantia de que recordações de infância, meu amarcord , são mais que puros delírios, ou seja, a encarnação viva do meu passado, que, como num passe de mágica, se atualiza, em cena, verbivocovideomusical, de uma música que não caiu no esquecimento, embora nossas rádios insistam em não tocar Moacir Santos, rendidas ao jabá.
Somos informados de que gravações originais, como a de Jorge Cury apresentando o iniciante Moacir Santos em Quando os Maestros se Encontram, no distante 1951, e novas narrações, a cargo de Luciana Vale, jornalista e apresentadora da Rádio Nacional, compõem o concerto sinfônico.
E o repertório? Um colírio para os ouvidos. A base são as partituras sinfônicas escritas por Moacir Santos entre 1949 e 1964 para os programas de rádio, com sucessos da MPB e alguns dos grandes hits da música mundial. Dá uma sacada: Cadeira Vazia, de Lupicínio Rodrigues, A Noite do Meu Bem, de Dolores Duran, e Camisa Listrada, de Assis Valente, além das orquestrações para All the Way, de James Van Heusen/Sammy Cahn, Volta ao Mundo, de Victor Young, e até mesmo a eterna Babalu, de Margarita Lecuona, nas vozes imortais de Dalva de Oliveira e Ângela Maria.
Tem mais: orquestrações do maestro para o LP Elizete interpreta Vinicius e Moacir Santos, de 1963, como Consolação, parceria do poeta com Baden Powell, além de composições do próprio Moacir Santos, Anfíbio e Nanã, parceria do maestro com Mário Telles. Faça o teste. Pergunte a qualquer um que não seja músico profissional se conhece Moacir Santos. A resposta quase invariável é não. Mas se você cantarolar Nanã, é quase certo que encontrará uma vaga recordação do interlocutor, por mais que ele seja surdo, ou ensurdecido pelo fascismo na música.
Os cantores escolhidos foram Áurea Martins e Marcos Sacramento. Disse a Andrea que gosto muito da cantora, e ainda não conheço o cantor, preço que pago pelo exílio dos grandes centros. – Eles estão dando o tom emocionado do concerto – disse Andrea. – Marcos Sacramento é uma voz maravilhosa, vale muito a pena ouvi-lo.
Áurea Martins e Marcos Sacramento são descritos como artistas admirados pela profundidade de suas interpretações e pela refinada seleção de repertório ao longo de suas carreiras, nos palcos nacionais, internacionais, casas noturnas e estúdios de gravação (sentiram que as emissoras de rádio não foram mencionadas?). É a primeira vez que cantam acompanhados de uma orquestra sinfônica – a Orquestra Sinfônica Nacional da Universidade Federal Fluminense, sob regência de Tobias Volkmann. A eles se juntam grandes instrumentistas do jazz brasileiro, como os saxofonistas Eduardo Neves, o violonista Luiz Flávio Alcofra e o pianista Itamar Assiere.
Áurea Martins começou sua carreira na Rádio Nacional e cantou na noite carioca por mais de 40 anos. Seu primeiro disco foi gravado como prêmio por ter vencido o programa A Grande Chance, de Flavio Cavalcanti, em 1969, na extinta TV Tupi. Ganhou o Prêmio da Música Brasileira de 2009 como melhor cantora da MPB, com o CD Até Sangrar. Em 2010, lançou seu segundo CD, De Ponta cabeça. Sua biografia, escrita por Lúcia Neves, foi lançada pela Editora Folha Seca em 2017. Com quatro LPs, quatro CDs e um DVD, Áurea é uma das mais ativas cantoras de sua geração. Gravou seu mais recente disco com o pianista Cristóvão Bastos.
Marcos Sacramento tem mais de 30 anos de carreira. Cantor e compositor, lançou 16 álbuns – seis solo e dez em duo com Soraya Ravente, Luis Filipe de Lima, Clara Sandroni, Zé Paulo Becker, Nilze Carvalho e Carlos Fuchs. Seu álbum A Modernidade da Tradição foi considerado pela revista francesa Le Monde de La Musique o melhor disco brasileiro lançado em 1997 na França, onde acaba de fazer uma turnê apresentando os afro-sambas de Baden Powell e Vinicius de Moraes, com o violonista Zé Paulo Becker.
A Rádio Nacional foi criada no Rio de Janeiro em 1936 como empresa privada e em 1940 foi estatizada pelo Estado Novo de Getúlio Vargas. Nas décadas de 1940 e 1950, foi o maior fenômeno de comunicação de massas no Brasil. Seus programas alcançavam todo o território nacional e eram transmitidos em cinco idiomas para as Américas, África, Europa e Ásia. A PRE-8 tinha mais de 700 profissionais entre cantores, radioatores, humoristas, cronistas, apresentadores, jornalistas, instrumentistas e grandes maestros, como Radamés Gnattali e Lyrio Panicalli. Chegou a ter, ao mesmo tempo, três orquestras, uma delas sinfônica. Sua orquestra brasileira semiclássica, com saxofones, violões, piano, percussão e cordas, marcou a sonoridade da época. A Era de Ouro do Rádio se estendeu até meados dos anos 60, quando a televisão passou a ser o principal veículo de comunicação popular no país.
– Sempre animada, Andrea? – Eu estou bem – respondeu –, enfrentando, como muitos de nós brasileiros, esses tempos loucos.
Caetano disse uma vez que o Brasil não está à altura da bossa nova. Nem da música de Moacir Santos, acrescento.
Serviço
Moacir Santos Sinfônico
Orquestra Sinfônica Nacional UFF – Concerto de encerramento da temporada 2018
Regente Tobias Volkmann
Cantores convidados Áurea Martins e Marcos Sacramento
Concepção, pesquisa e curadoria Andrea Ernest Dias
Acervo Coleção Rádio Nacional do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro
Realização e produção Centro de Artes da UFF
15 de dezembro, sábado, 10h30
Série OSN Popular
Centro de Artes da UFF – Rua Miguel de Frias, 9, Niteroi
Ingressos R$ 30,00 e R$ 15,00 (meia entrada)
16 de dezembro, domingo, 18h
Série Sala Jazz
Sala Cecilia Meireles – Largo da Lapa, 47, Rio de Janeiro
Ingressos R$ 40,00 e R$ 20,00 (meia entrada e músicos com carteira da OMB, R$ 2,00 (estudantes de música).
Transmissão ao vivo pela Rádio MEC FM, 99.3 MHz.
Belo tributo a esse ouro brasileiro. Pena Goiânia estar cada vez mais distante.