Acredito que ninguém nasce em Jerusalém por acaso, impunemente. Esta cidade é o centro nervoso das três maiores religiões monoteístas do mundo (judaísmo, islamismo e cristianismo) e viu batalhas milenares, grandes templos construídos e derrubados, abrigou símbolos poderosos da humanidade, assistiu impérios ascenderem e ruírem, sediou pontos sagrados envolvendo os patriarcas do Antigo Testamento, a agonia de Jesus e a ascensão de Maomé. Não é um lugar qualquer para nascer ou morrer.
O escritor Amós Oz nasceu em Jerusalém em 1939 e morreu em Telaviv neste dia 28 de dezembro de 2018, aos 79 anos, vítima de câncer. E foi também em Jerusalém que ambientou boa parte de sua obra única, engajada, composta por 35 títulos, traduzidos em 42 idiomas. Aliás, uma das questões que ele gostava de mencionar em seus livros era justamente essa relação da identidade de um povo com sua língua, no caso, os judeus com o íidiche, um dialeto usado pelos judeus e que traz um significado.
Oz sabia como ninguém em sua geração trabalhar essas questões que, em última medida, remetiam à grande diáspora do povo judeu, o mesmo que, segundo as Escrituras, Moisés teria conduzido pelo deserto, fugindo da escravidão no Egito para encontrar a Terra Prometida. Uma longa história que ainda é debatida fortemente em Israel em sua conturbadíssima e quase dogmática hostilidade com os árabes da vizinha Palestina, um barril de pólvora em plena combustão ainda neste século 21.
Oz é um escritor de seu tempo no sentido de que, com uma prosa contemporânea, jamais deixou de se posicionar nesse contexto tão delicado. Mais até que seu conterrâneo David Grossman – que chegou a perder um filho nos constantes combates entre israelenses e palestinos –, Oz adentrou esse campo minado usando para isso ensaios, memórias e uma ficção cheia de erudição e humanidade. É interessante notar que nesse movimento, ele nem sempre agradou seu próprio público.
Oz, que esteve no Brasil participando de uma edição da Festa Literária de Paraty em 2007, não se furtava ao debate mais aprofundado das complexas questões que envolviam as negociações de paz entre Israel e Palestina, sem cair na armadilha do maniqueísmo, tentando entender, criticamente, as razões de cada um dos lados. As revoltas palestinas e seus consequentes atentados e o expansionismo israelense e sua virulenta tática de defesa eram abordados por Oz sob diversos ângulos.
Mas Oz surpreendia ao não defender exatamente uma posição específica, ser advogado de um lado ou outro, mas nos desafiou a um entendimento menos óbvio, a sair do senso comum e a demolir os estereótipos que tantas vezes rondam esse tipo de debate. Ele fez isso de maneira mais explícita ou de forma oblíqua. Para tanto, tomava personagens com muitas camadas, como no romance Judas, obra da parte final de sua vida e que demonstra a maestria de ir e voltar no tempo para falar do apóstolo traidor.
Pacifista convicto, Oz foi um militante global do movimento Paz Agora, fundado em 1977, que tentava encontrar saídas negociadas para o conflito árabe-israelense. Isso lhe valeu críticas dos setores mais radicais, algo com o qual já estava acostumado desde que, ainda no início dos anos 1960, colocou-se na oposição ao então primeiro-ministro David Ben Gurion e sua política pró-sionismo, uma ideologia vista como excludente de qualquer possibilidade de acordo com os vizinhos da Palestina.
O escritor, que foi militar e chegou a combater na Guerra dos Seis Dias contra o Egito na Península do Sinai, em 1967, e na Guerra do Yom Kippur, em 1973, nas Colinas de Golã, não acreditava em soluções armadas. Ele preferia ler essa realidade sob outras lentes e seus livros deixam isso claro. Obras como O Mesmo Mar, De Amor e Trevas, Rimas da Vida e da Morte e Cenas da Vida na Aldeia, o autor emprestava a essa luta uma outra dimensão, mostrando que a vida cotidiana continuava, apesar ou por conta dessa sombra. Talvez o livro mais emblemático neste sentido seja o provocativo Como Curar Um Fanático, extremamente atual para os dia de hoje.
Esse caráter doméstico que tantos de seus personagens têm, esses amores destruídos por desencontros e ausência de compreensão mútua, os desafios de uma sociedade em que embates ininterruptos permeiam narrativas bem construídas e que nos convidam à reflexão eram a matéria-prima para o escritor. Oz conhecia toda a arqueologia, os traumas, as perseguições sofridas pelo seu povo, assim como sabia dos mesmos traços dos árabes. E lançava sobre ambos um olhar sem vilões. Todos eram vítimas, até mesmo os sentimentos.
Excelente reportagem. Faz observações importantes sobre o escritor, Reconhecendo-lhe as qualidades e informando o leitor mais desavisado sobre a importância do autor e a qualidade de sua literatura.