Testemunhamos recentemente o capitão reformado que ocupa a Presidência da República deste país proclamar, em alto bom e som, que a democracia e a liberdade só existem se as Forças Armadas assim o quiserem. Logo veio a turma do deixa-disso para desdizê-lo, em mais um esforço inglório da chamada “ala racional” do (des)governo para conter os danos das bravatas bolsonarianas. Mas já que o capitão reformado, mesmo que de um jeito desastrado, chamou a atenção para o papel das Forças Armadas em um regime democrático, recomenda-se retornar a um clássico da teoria política, A democracia na América, de Alexis de Tocqueville (1805-1859), para pensar sobre essa delicada relação.
Tocqueville se preocupou sobretudo com a ameaça do que ele chama de “despotismo democrático”, na forma de um Estado forte e centralizador que controla as massas nas sociedades modernas. A palavra “democrático” em companhia de “despotismo” pode soar estranha hoje aos nossos ouvidos, porém, Tocqueville a emprega primeiro porque em sua obra a “democracia” surge muitos vezes como sinônimo de “igualdade” (igualdade pensada aqui como a ausência das rígidas hierarquias sociais que caracterizavam as épocas aristocráticas) e, em segundo, porque ele considerava que mesmo um governo eleito pelo voto popular, portanto “democrático”, poderia resvalar para o autoritarismo – não à toa, muitos de seus intérpretes viram nessa descrição do “despotismo democrático” pelo autor um prenúncio dos fascismos que emergiriam no século XX.
A problemática em torno de um regime militar puro-sangue não é propriamente explorada em sua obra, apesar de Tocqueville ter nascido em plena era napoleônica, comandada por um general que se autossagrou imperador. Porém, os três capítulos que dedicou à análise dos “exércitos democráticos” no segundo volume da Democracia…, publicado em 1840 (o primeiro fora lançado em 1835), ainda se conservam bastante atuais em alguns aspectos.
Um dos argumentos centrais de Tocqueville é que os exércitos, nos regimes democráticos, experimentam uma situação paradoxal: inseridos em uma sociedade que só deseja a paz e a prosperidade, característica primordial dos cidadãos das democracias, os membros das Forças Armadas são os únicos que anseiam pela guerra. Tal ocorre porque, em um ambiente desprovido de espírito guerreiro, como o são as democracias modernas, a carreira militar costuma não ser atrativa para as elites. Os ricos e com maior nível de instrução preferem se dedicar a atividades que tragam mais vantagens financeiras ou prestígio social e intelectual, em consequência, o ofício das armas costuma ser abraçado pelos indivíduos dos estratos mais inferiores da sociedade. Estes, por sua vez, enxergam numa situação de guerra ou revolução a chance de alcançar um maior destaque e uma maior influência política do que teriam em tempos de paz. “Não é portanto espantoso que os exércitos democráticos se mostrem frequentemente inquietos, ameaçadores e insatisfeitos com sua sorte”, constata Tocqueville.
Esse diagnóstico do exército como um fator de contínua perturbação nas democracias apresentado por Tocqueville tem, entretanto, algumas nuances. À medida que as instituições e a própria vida democráticas de um determinado país se consolidam, mais esse espírito democrático também penetra em suas Forças Armadas. Nestas, são justamente os soldados que constituem o contingente em que as convicções democráticas são mais amplamente disseminadas. A explicação se dá porque, como nas democracias o serviço militar costuma ser obrigatório para todos (pelo menos para os homens), a passagem pelas fileiras militares em geral é temporária. Os convocados ao serviço obrigatório – a maioria a contragosto – vestem a farda por algum tempo e não veem a hora de retomar seus trajes e sua rotina civis. Não adquirem os hábitos e a mentalidade da caserna, ao contrário, levam para lá o espírito democrático da sociedade.
“É sobretudo pelos soldados que se pode ter a esperança de fazer penetrar num exército democrático o amor à liberdade e o respeito aos direitos que se soube inspirar ao próprio povo”, anota Tocqueville.
No topo da hierarquia, os oficiais de alto coturno, nos postos de comando, apesar de formarem como que uma nação à parte da sociedade, também guardam bons motivos para ajudar a preservar o ambiente pacífico da democracia. Para eles, o fato de ter alcançado elevadas patentes significa, por si só, um passo imenso. Assim, o caminho natural é que prefiram preservar a posição confortável de que desfrutam do que arriscar tudo em uma aventura guerreira ou revolucionária. “Ou muito me engano, ou a parte menos guerreira, bem como menos revolucionária, de um exército democrático será sempre seu comando”, observa o autor de A democracia na América.
Entre a soldadesca e os generais e outros militares mais graduados, há, no entanto, uma nada desprezível categoria de militares que pode se mostrar, sim, afeita a insurreições contra a ordem democrática, segundo Tocqueville. São os que ele chama de “suboficiais”, grupo que fica imediatamente abaixo do que no Brasil são classificados de “oficiais intermediários” (correspondentes justamente à patente de capitão). Condenados a levar uma “vida obscura, estreita, incômoda e precária”, sujeitos às arbitrariedades dos seus superiores e ao peso de um rígido código disciplinar em que qualquer desvio, por menor que seja, arrisca colocar a perder anos de trabalho e dedicação, os suboficiais podem ficar tentados a ver nos levantes, guerras e revoluções uma chance de mudar sua condição. “O suboficial quer, pois, a guerra, […], e se lhe recusam, deseja as revoluções, que suspendem a autoridade das regras no meio das quais ele espera, através da confusão e das paixões políticas, expulsar seu oficial e tomar o seu lugar”, salienta o teórico francês.
É claro que as democracias contemporâneas, com seus exércitos profissionais, apresentam hoje um cenário muito mais complexo do que o retratado por Tocqueville há quase 200 anos. Porém, o que importa realçar é como, na percepção do autor, o espírito público que leva as forças de defesa de um país a resguardar a ordem democrática é mais ou menos reforçado de acordo com o grau da própria maturidade democrática da nação a que servem. Se, como foi dito, Tocqueville considera que os soldados são, dentro da hierarquia militar, aqueles que melhor representam o espírito democrático, isso ocorre porque essas convicções democráticas da base da hierarquia militar se devem exatamente ao fato de os soldados se verem, acima de tudo, como cidadãos. Mas é preciso lembrar que eles, na visão tocquevilleana, constituem uma espécie de reflexo da sociedade em que vivem: assim, o apreço pela democracia dessa categoria de militares depende diretamente do nível de enraizamento dos ideais democráticos nos costumes e nas instituições do povo a que pertencem.
Concluindo, o exercício contínuo da democracia e da liberdade política inerente a ela são condição para a existência de um efetivo militar reverente à ordem democrática e não consequência da benevolência das suas Forças Armadas, diferente do que apregoa o capitão reformado. E o gosto pela democracia e pela vida cívica se cultiva, como se depreende da leitura de Tocqueville, através do exercício ativo da cidadania, da participação política e do debate público e aberto, e não por meio de marchas e hinos patrióticos − ao contrário do que parece acreditar o professor colombiano que até pouco tempo ocupava a pasta da Educação e que se diz estudioso do autor da Democracia na América.
(Texto atualizado em 8 de abril de 2019)
Beleza de texto! Síntese perfeita de aspectos significativos da obra do autor, capazes de jogar luz sobre o imbróglio que estamos enfrentando no país. Parabéns!
Infelizmente vivemos um dos piores períodos da nossa história, desde a redemocratização em 1985. É no mínimo irracional um presidente que foi eleito pelo regime democrático querer homenagear o golpe militar de 1964 que foi um regime de tortura e perseguição. É inaceitável qualquer ato de comemoração e sim reflexão para evitar que o país passe por essa situação novamente.