Em uma crônica publicada no suplemento literário “Letras e Artes”, do jornal A Manhã, no dia 25 de maio de 1954, Guimarães Rosa narra sua tentativa frustrada de desvelar o enigma das cores na língua terena. Depois de passar por Campo Grande, Aquidauana e por uma pequena comunidade chamada Limão Verde anotando palavras soltas, narrador-personagem-cronista dá-se conta do que parece ser um pequeno tesouro: as palavras usadas para designar cor terminavam em i’ti. Ararai’ti seria cor da arara, supôs. E havia ainda hononoi’ti para verde, hopoi’ti para branco. Voltou a Aquidauana para investigar, gastou horas perguntando aqui e ali o que significava i’ti. “Toda língua são rastros de velho mistério”, anotou.
Rosa conversou com vários terenas moradores de Aquidauana – mas i’ti não era aquilo de cor, quer dizer, era e não era, era só sangue mesmo, alguém disse. Rosa vibrou de alegria: sangue de arara parecia mais poético ainda. Então verde seria sangue de folha? Azul, sangue do céu? Continuou a investigação porque entendeu que só poderia confirmar sua hipótese se lhe dissessem exatamente o que significavam as palavras preto e branco. Nada. Coisa nenhuma, diziam os terenas. Que tristeza, foi a última frase de Guimarães nessa crônica.
A experiência narrada por Rosa no texto chamado Uns Índios – Sua Fala é um entre vários relatos de encontro intercultural em que, apesar da intenção genuína de saber do outro, o eu que investiga não se abre para esse outro. Ele descreve a língua do outro como uma lista de palavras interessantes, que permanece fechada como um mistério, uma promessa de acesso à linguagem poética do éden. A dualidade mostra-se assim: o outro-mistério-vocábulo, eu-razão-sintaxe; o outro, sem sintaxe, gagueja e ignora sua própria poesia, que apenas “meu” olhar poético revela. Trata-se da velha estratégia do narrador culto que emoldura a fala do personagem iletrado da cultura popular.
Ely Ribeiro de Souza, escritor indígena da etnia Macuxi, alerta para as consequências desse tipo de romantização:
Fora desses contextos [dos contextos em que a poesia, a música e a narrativa indígenas cumprem suas funções rituais], amplamente diversos, fora de suas realidades simbólicas, suas concepções cosmológicas, é reproduzir ideias folclóricas sobre nossos povos, construindo-se uma reificação de imagens equivocadas sobre a cultura viva, congelando-a numa temporalidade anacrônica e irreal (in: Dorrico et al, 2018, p. 57).
Paradoxalmente, o axioma da autonomia da obra de arte, os critérios orientadores do imanentismo, a prática da Close Reading nos fizeram, por vezes, esquecer a necessidade ancestral da narração em nossas configurações políticas, sociais e subjetivas. Esse tipo de esquecimento propicia juízos arrogantes como ouvi, certa vez, de um professor verdadeiramente erudito – “não existe literatura indígena”.
Claro está que existe em sua negação uma concepção bastante específica de literatura, que podemos sintetizar mais ou menos assim: conjunto de textos que se identificam por um arranjo especialíssimo da linguagem, capaz de produzir um efeito de desautomatização no leitor, despertando-o, pela função estética e não pela representação, para uma visada crítica que não depende da realidade ou do mundo. Ainda, mais emblematicamente, como observou Peter Burger sobre a frase de Maurice Denis: “Um quadro – antes de ser um cavalo de batalha, uma mulher nua ou qualquer anedota – é uma superfície plana, coberta de tinta, em uma determinada ordem”.
Trata-se, como podemos verificar em diferentes manuais de teoria da literatura, de uma concepção moderna/modernista, que passou a vigorar a partir das transformações epistemológicas provocadas pela instauração do Eu como sujeito único e irrepetível, saudoso da natureza (semelhante ao doente que sente falta da saúde – a imagem está no Poesia Ingênua e Sentimental de Schiller) que encontra na arte o equivalente expressivo de sua singularidade. Ocaso da mímesis, emergência da autonomia da obra de arte enquanto forma elaborada para gozo e reflexão solitários.
Antes disso, contudo, na aurora dos agrupamentos humanos, quando ainda nem poderíamos sonhar com o tipo de fruição de narrativa oferecida pelo cinema ou pela Netflix, as formas poéticas (vale lembrar o que há de “fazer” na raiz de poiesis) realizavam, produziam, uma espécie de efeito benigno em seus ouvintes – geralmente reunidos por interesses comuns, laços de culto, de família e de trabalho. Um efeito que, segundo Nicolau Sevcenko, em seu estudo sobre as raízes xamânicas da narrativa, provocava “um envolvimento que transcendia a própria combinação das palavras ou a combinação do enredo”. O historiador cita o seguinte trecho de um canto do xamã Amahuaca:
Oh espírito todo-poderoso
Do arbusto de folhas fragrantes
Cá estamos de novo em busca de sabedoria
Dá-nos tranquilidade e orientação
Para entender os mistérios da floresta
O conhecimento de nossos ancestrais.
Fantasma que revela o espírito da vinha
Buscamos sua orientação agora
Para traduzir o passado no futuro
Para entendermos cada detalhe da natureza
Para melhorarmos nossa vida
Revela os segredos de que nós precisamos
Juntemos lé com cré, justapondo o canto Amahuaca ao proêmio da Odisséia:
O homem canta-me, ó Musa, o multifacetado, que muitos
males padeceu, depois de arrasar Troia, cidadela sacra.
Viu cidades e conheceu costumes de muitos mortais. No
mar, inúmeras dores feriram-lhe o coração, empenhado em
salvar a vida e garantir o regresso dos companheiros. Mas
não conseguiu contê-los, ainda que abnegado. Pereceram.
vítimas de suas presunçosas loucuras. Crianções! Forraram
a pança com a carne das vacas de Hélio Hipérion. Este os
privou, por isso do dia do regresso. Das muitas façanhas,
Deusa, filha de Zeus, conta-nos algumas a teu critério.
(Trad. Donaldo Schüller)
Como esse mosaico não inspira associações sobre a função mais antiga da narrativa?
As pessoas buscavam conhecimento e sabedoria nas formas poéticas da narração. Invocavam seus deuses e deusas e mensageiros vários, todas todo-poderosos, a quem solicitavam humildemente o conhecimento de que necessitariam para sobreviver. Reparem no canto de Amahuaca: “Fantasma que revela o espírito da vinha/Buscamos sua orientação agora/ […] Revela os segredos de que nós precisamos”. Quem invoca não sabe do que precisa saber, confia na divindade. Do mesmo modo ocorre nos versos homéricos: “Das muitas façanhas,/Deusa, filha de Zeus, conta-nos algumas a teu critério”. As astúcias de Ulisses eram bastante conhecidas, mas quais ofereceriam o verdadeiro conhecimento? Por verdadeiro, entenda-se: conhecimento útil para a vida.
Tudo isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa. Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos (Walter Benjamin).
No texto O Narrador, esse Walter Benjamin da citação lamentava que, na modernidade, as ações da experiência perderam qualidade e diminuíram em quantidade. Se a narrativa, em sua forma tradicional, definia-se por nossa capacidade de trocar experiência; se as experiências estão em baixa; assim, a narrativa estaria próxima do fim.
Tiago Hakiy, escritor indígena Sateré-Mawé, confirma o que Walter Benjamin defendeu ao ler contos de fadas europeus:
O contador de histórias sempre ocupou um papel primordial dentro do povo, era centro das atenções, ele era o portador do conhecimento, e cabia a ele a missão de transmitir às novas gerações o legado cultural dos seus ancestrais. Foi dessa forma que parte do conhecimento de nossos antepassados chegou até nós, mostrando-nos um caleidoscópio ímpar, fortalecendo em nós o sentido de ser indígena (in: Dorrico et al, 2018, p. 38).
Um aprendizado: aprender a lembrar, ou aprender lembrando, qual é a missão da narrativa. Aprender a historicizar contando história, histórias.
Excelente. Parece haver uma gigantesca “avenida” de insights a serem percorridos nesta que parece ser uma “crítica antropológica”. Parece ser um caminho muito rico. Parabéns pelo texto claro e bastante útil
Que riqueza de texto. Excelente!