Genocídios são crimes contra a humanidade. Não prescrevem, não ganham perdão, não podem ser esquecidos. Não se fala e se recorda esse tipo de evento absurdo como se comenta ou se recorda um incômodo. É necessário manter respeito, ter algum tipo de empatia pela dor dos inúmeros que pereceram ou desapareceram, pelos traumas dos que sobreviveram, pelas cicatrizes que jamais se fecharam. Portanto, não se deve falar irresponsavelmente sobre assuntos tão delicados e sensíveis. É preciso cuidado.
Um dia, quem sabe, o presidente brasileiro aprenda essa lição, mas enquanto isso não acontece, é necessário que reflitamos sobre essas chagas que expõem a crueldade e a brutalidade a que o ser humano é capaz de chegar, imprimindo os mais terríveis sofrimentos ao seu semelhante, eliminando o outro sem piedade ou remorso. E agora, quando se recorda os 25 anos do genocídio de Ruanda, é um momento apropriado para tocarmos nas raízes que originam ódios que, muitas vezes, deságuam na barbárie.
No dia 6 de abril de 1994, o avião que transportava o presidente de Ruanda, Juvénal Habyarimana, foi abatido por um míssil quando retornava ao país. Habyarimana voltava de Paris, onde se encontrara com o então presidente francês, François Mitterrand, justamente para conseguir apoio para se manter no poder. Ele já ocupava o cargo há 20 anos, herdando e agravando conflitos tribais após a independência da nação africana da Bélgica e seu colonialismo violento e altamente explorador.
O líder ruandense era violento e totalitáro. Membro da etnia hutu, ele tivera participação na política de enfrentamento com os tutsis, outro povo que compõe a população de Ruanda, país criado pelo colonialismo europeu sem levar em conta essas rivalidades locais. Isso criou um barril de pólvora pronto para explodir. Desde a descolonização, nos anos 1960, encontrar uma fórmula política de consenso mostrou-se impossível. Corrupção e governos autoritários só pioraram esse contexto.
Campos de refugiados em Uganda, para onde tutsis foram expulsos, deixaram a temperatura ainda mais alta e as tensões mais evidentes. Ruanda já ensaiava mergulhar numa guerra civil, dadas as escaramuças entre tropas do governo e a Frente Nacional Ruandense, que tinha como líder Paul Kagame. Foi quando aconteceu o fatídico atentado. A derrubada do avião do presidente foi imediatamente vinculada aos tutsis e até a hutus moderados, que pregavam o diálogo entre as duas etnias.
“Durante 100 dias, a partir daquele início de abril de 1994, Ruanda foi palco de atrocidades que não se viam desde a Segunda Guerra Mundial. Nesses poucos mais de três meses, calcula-se que pelo menos 800 mil pessoas foram massacradas (há estimativas que chegam a quase 1 milhão de vítimas), mortas das formas mais horrendas que se possa imaginar. Muitos perderam a vida a golpes de facão, degolados com machados e foices, com crânio esfacelados a pancadas e pedradas.”
Uma série de notícias espalhadas pelas rádios do país não só culpavam os tutsis pela morte do presidente hutu, como também conclamavam a uma vingança sangrenta. A ordem era matar, exterminar todos os membros da etnia rival que encontrassem, não importando se eram idosos, mulheres grávidas, crianças. Todos deveriam ser barbaramente assassinados. Aquele povo precisava ser exterminado, eliminado da face da Terra, clamavam. Um discurso de ódio extremo que levou ao inominável.
Durante 100 dias, a partir daquele início de abril de 1994, Ruanda foi palco de atrocidades que não se viam desde a Segunda Guerra Mundial. Nesses poucos mais de três meses, calcula-se que pelo menos 800 mil pessoas foram massacradas (há estimativas que chegam a quase 1 milhão de vítimas), mortas das formas mais horrendas que se possa imaginar. Muitos perderam a vida a golpes de facão, degolados com machados e foices, com crânio esfacelados a pancadas e pedradas.
Populações de vilas inteiras desapareceram em questão de horas. Casas eram invadidas e crianças viam seus pais serem mortos antes de elas mesmas perderem a vida. Gestantes tiveram os ventres abertos e os fetos jogados ao chão. Estupros coletivos eram praticados antes da execução sumária das vítimas. Cidades foram incendiadas e corpos eram deixados insepultos, apodrecendo nas ruas. Cerca de 2 milhões de pessoas fugiram para países vizinhos, como o Congo, para não morrerem.
É difícil imaginar um grau tão absurdo de violência, mas infelizmente o genocídio de Ruanda é apenas o mais recente nessas proporções, mas não o único. Apenas no século 20, o mundo assistiu a vários deles. Na Primeira Guerra Mundial ocorreu o genocídio armênio, quando os turcos provocaram a morte de mais de 1 milhão de pessoas do pequeno país, por meio da fome e de toda sorte de violências. Ainda hoje aquele caso é indigesto para a Turquia, que nega sua existência e não assume a culpa.
Durante o stalinismo, a União Soviética viu milhões de pessoas sucumbirem ao totalitarismo comunista, que não poupava nem mesmo os aliados do regime. Perseguições políticas levaram multidões para campos de trabalhos forçados de onde era praticamente impossível sair vivo. Os inimigos eram jogados em prisões de onde desapareciam. Grupos étnicos contrários a Stálin também sofreram os efeitos da mão pesada de ditador, crimes que depois foram revelados pela própria URSS.
Na Segunda Guerra Mundial, o nazismo alemão promoveu o que chamou de “Solução Final”, montando uma indústria do extermínio em campos de concentração. Nessas fábricas da morte, cerca de 6 milhões de judeus foram asfixiados em câmaras de gás e incinerados em fornos crematórios. Homossexuais, negros, ciganos e comunistas foram exterminados na Alemanha e nos países dominados pela loucura imperialista de Hilter, tudo em nome de uma pretensa superioridade ariana, uma supremacia racial.
Em todos esses casos, em diferentes medidas, o que vemos é uma regularidade de métodos e uma horripilante repetição em seus resultados. A guerra entre tutsis e hutus em Ruanda reproduziu a hostilidade étnica que se viu, por exemplo, entre turcos e armênios ou entre “arianos” e judeus. Estimulou-se rivalidades existentes ou inventou-se outras que sequer estavam na pauta. Isso voltou a acontecer na antiga Iugoslávia, com as históricas diferenças entre sérvios, croatas e bósnios, por exemplo.
Esses ódios atávicos ou fabricados por uma perversa publicidade política são o combustível para enfrentamentos que, quase sempre, atendem a interesses de grupos que querem se manter ou chegar ao poder. Fomentar ideologias que separam e não agregam as pessoas, que criam diferenciações entre indivíduos que que convivem cotidianamente, abrindo possibilidades para cenas impensáveis, é uma constante nesses casos. Essas cenas que se repetiram em todos esses genocídios.
Vizinhos denunciando uns aos outros, parentes se estranhando e não mais se reconhecendo como iguais, amigos se vendo como adversários, sentimentos de vingança à flor da pele e oportunismos de toda ordem, delações covardes, acusações mentirosas. Os judeus na Europa viveram isso na Segunda Guerra; tutsis sofreram um massacre em Ruanda; algo parecido ocorre em outros lugares do mundo, do Norte da África ao Oriente Médio, da Ásia aos EUA, em diferentes graus, gestando o pior.
Ruanda decretou luto oficial de 100 dias para lembrar o genocídio. Não para perdoá-lo, mas para, quem sabe, encontrar uma conciliação. Ela existe, mas é frágil, como atesta quem acompanha a situação por lá. Em um memorial, crânios de vítimas estão expostos, esfacelados pela selvageria que se viu. As narrativas sobre o caso são enfatizadas e leis de segregação entre as duas etnias vêm sendo revogadas. Mas não é um trabalho fácil. Há muitos traumas envolvidos. Traumas de um perdão impossível.