Kant dizia que não se ensina a filosofia, mas a filosofar. Mas se é assim, no que consiste, então, a especificidade da filosofia? Se ela não dispõe de um conteúdo básico ou métodos fixados, o que um professor de filosofia deve, então, ensinar?
Uma afirmação corrente que se ouve a respeito da filosofia é que ela “ensina a pensar”. O que significa, porém, “ensinar a pensar”? Afinal, pode-se contrapor, pensar não é uma capacidade inata do ser humano, como andar e falar ? Qual o propósito de ensinar a uma pessoa o que ela, em princípio, desenvolveria naturalmente por si mesma?
Sabe-se que mesmo as capacidades humanas de andar e falar não se desenvolvem tão naturalmente assim, porque esse desenvolvimento implica um aprendizado que se dá na convivência com os outros e pela observação. No caso do pensamento, no que tange à filosofia, uma resposta inicial às objeções feitas no parágrafo anterior é dizer que a forma de pensar que a filosofia “ensina” – ou melhor, estimula – é pensar reflexivamente, pensar de forma crítica.
Mas o que é pensar de forma crítica? Uma maneira de responder a essa questão é tentar definir o próprio fazer filosófico, uma tarefa nada fácil. Entre os vários caminhos que pode-se percorrer para chegar a uma resposta, um deles está no livro O que é a Filosofia?, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, que apresentam a filosofia como uma atividade de pensamento que consiste em criar conceitos.
Deve-se fixar primeiramente na definição da filosofia como uma “atividade”. Como bem observa o professor Silvio Gallo, na concepção de Deleuze e Guattari, a filosofia é encarada como um ato, um ato de pensamento. No que diz respeito ao ensino da filosofia, essa visão é determinante – mais do que chegar a algum resultado, o que é imperativo para a filosofia é a própria experiência do pensamento (daí a afirmação de Kant de que não se ensina a filosofia, mas a filosofar).
Outro ponto importante que se deve reter dessa definição de Deleuze e Guattari diz respeito a um aspecto, que, segundo eles, é específico da filosofia: a criação de conceitos. Mas o que se chama aqui de conceito não deve ser entendido no sentido corrente de uma definição – desse ponto de vista, do conceito visto como definição, o conceito seria como uma resposta definitiva a uma pergunta e com isso paralisaria o pensamento, contrariando justamente a ideia da filosofia como uma atividade do pensamento que não cessa.
Citando mais uma vez o professor Silvio Gallo, a filosofia é um tipo de pensamento que se articula em torno daquilo que é problemático, em torno de problemas que não se resolvem de forma direta, imediata e definitiva. O conceito seria, assim, o momento de abstração do sujeito sobre as questões que a realidade apresenta.
Assim, conforme Deleuze e Guattari, o conceito é ao mesmo tempo um ato de pensamento e um produto do pensamento. O conceito seria, então, uma forma de equacionar um problema que motiva a experiência filosófica, sem, no entanto, resolvê-lo ou eliminá-lo. É simultaneamente o resultado da experiência do pensamento e um motivador, um impulsionador de novas experiências do pensamento.
O exemplo de Sócrates oferece um testemunho dessa experiência do pensamento que a atividade filosófica proporciona. No livro A Vida do Espírito, Hannah Arendt lembra que Sócrates denominava-se a si mesmo como um “moscardo”, uma “parteira” e que Platão chamou-o certa vez de “arraia-elétrica”, um peixe que paralisa e entorpece aqueles que o tocam. Sócrates definia-se como um moscardo porque esforçava-se em “ferroar” os cidadãos, retirando-os do entorpecimento e despertando-os para o pensamento, uma atividade sem a qual, na sua concepção, a vida não valia a pena ser vivida.
E ele chamava a si próprio de uma parteira porque trazia à luz os pensamentos alheios – Arendt diz que esses pensamentos tratavam-se, na maioria das vezes, de “falsos fetos”. Na verdade, Sócrates “purgava” as pessoas dos preconceitos não examinados que as impediam de pensar. A comparação com a arraia-elétrica é porque ele, sabendo que nada sabia, transmitia suas próprias perplexidades aos outros. Ou seja, apesar de estimular seus concidadãos a refletir sobre questões como justiça e piedade, ele próprio nunca oferecia respostas acabadas para essas questões.
De acordo com os exemplos citados, percebe-se que o ensino de filosofia implica estimular os estudantes a se submeter à experiência do pensamento, a pensar criticamente. E não apenas fazê-los decorar conceitos e muito menos “doutriná-los”.
Mas afirmar isso sobre a filosofia não quer dizer necessariamente que ela prescinde de conteúdo, sob o risco de confundi-la com uma técnica para desenvolver a capacidade de raciocínio e argumentação, o que a reduziria, no fim das contas, a uma sofística. E aqui volta-se às questões propostas no primeiro parágrafo deste texto. A filosofia é sim um campo do conhecimento com conteúdo específico, com seus próprios métodos e acervos de questões, uma história que a destaca de outras produções culturais humanas, além de conceitos que foram sendo sedimentados historicamente.
Mas o ensino da filosofia precisa ser algo mais do que simplesmente percorrer a história da filosofia, com a mera preocupação de transmitir um saber enciclopédico, descolado da experiência concreta do mundo real e dos problemas do cotidiano. Do contrário, como diz ironicamente Hannah Arendt, seria uma tarefa para antiquários.
De que maneira combinar então o patrimônio legado pelos pensadores há mais de dois milênios, desde o surgimento da filosofia, e a concepção dessa disciplina como uma atividade que cria conceitos, segundo a concepção de Deleuze e Guattari? Sabe-se que os filósofos, no decorrer da história, foram afetados por questões problemáticas para as quais buscaram respostas conceituais. O desafio da filosofia seria, nessa perspectiva, abrir espaço para essas criações conceituais, atualizando-as e, portanto, proporcionando a criação de novos conceitos. A história da filosofia, desse ponto de vista, não é algo congelado no tempo, mas fonte viva de inspiração para as questões contemporâneas.