Lá fora, o pau estava quebrando na Casa de Noca. O Egito vivia tempos turbulentos, com protestos em que blocos de cimento voavam pela Praça Tahrir, no coração do Cairo, e o majestoso Nilo testemunhava mais uma das incontáveis mudanças de ventos políticos em uma terra com tantos milênios de história. A chamada Primavera Árabe havia derrubado um ditador há quase três décadas no poder, mas os ânimos continuavam exaltados. Menos em um lugar, bem ali ao lado, alheio a toda a confusão.
Da porta do Museu Egípcio do Cairo era possível ouvir sons difusos, como sirenes, explosões surdas, um vozerio incompreensível, mas o guia estava muito tranquilo. Tranquilo até demais, não? Na verdade, não. Ele nos convida a entrar no imenso prédio cor de salmão, com duas estátuas de esfinge ladeando as portas. “Estas peças são do período do faraó Ramsés II”, informa. Mais um tesouro escavado debaixo de toneladas de terra e esquecimento não tão longe dali, em areias próximas.
O interior do prédio de três andares parecia estar em outra dimensão. Turistas maravilhados, guias tentando demonstrar seu melhor inglês e profissionalismo, dando detalhes sobre cada peça, na ponta da língua cada dinastia, os feitos e fracassos de homens e mulheres que definiram boa parte dos destinos da Antiguidade. Desconexão completa com os protestos a menos de um quilômetro, conexão total com fatos ocorridos há milênios. Muita coisa para ver, para conhecer, para se maravilhar. Sarcófagos, ídolos, inscrições, tudo em doses generosas.
Todos os caminhos do grande museu levam a uma ala que fica no final de um interminável corredor, onde estão alguns dos tesouros encontrados na tumba do faraó mais pop da história, Tutânkamon. A múmia do menino que governou o maior império da Terra em seu tempo não está no museu e sim em sua tumba, no Vale dos Reis, perto de Luxor, região central do Egito, mas no prédio estão alguns dos sarcófagos em que ela estava, a máscara de ouro que cobria seu rosto e objetos que foram encontrados na câmara mortuária, incluindo carruagens de guerra.
O melhor desses passeios é quando você vai ao local com grande expectativa para ver determinado item e de fato consegue – neste caso, essa parte dedicada a Tutânkamon –, mas acaba surpreendido com algo ainda maior. E essa surpresa inesquecível estava em uma sala com pouca iluminação, até um tanto escura mesmo. “Aqui é a Sala das Múmias Reais”, explica o guia. “Por favor, não conversem em voz alta, não toquem em nada, é terminantemente proibido tirar fotos.” Ok, entendemos. Vamos lá.
Na porta, uma mulher de burca negra, quase totalmente coberta, mas da pequena abertura de seu traje ela nos lança um olhar grave. Sim, ela vai vigiar se você está se comportando adequadamente naquele espaço que resguarda um ar de sagrado. Quem não segue as regras, leva bronca. “Aqui é um lugar onde estão pessoas que já foram consideras deusas”, justifica. Ali estão alguns dos tesouros arqueológicos mais valiosos do mundo. Mais que isso, ali estão várias das mais extraordinárias descobertas nessa área em toda a história e que nos ajudam a entender o Mundo Antigo.
Não há guias dando informações para evitar o burburinho no lugar, mas os dados estão em placas ao lado de cada caixa de vidro. Uma estrutura transparente que nos coloca a uma distância de centímetros dos corpos mumificados de alguns dos faraós mais poderosos de um Egito mítico. Aqui está Tutmés II, sexto faraó da 18ª Dinastia, reinando por cerca de meio século há 3.500 anos. Ligando seu poder ao deus Amon, ele levou o Egito a fazer quase 20 campanhas militares de grande porte, expandindo o império das margens do Nilo às atuais Síria, Palestina e ao rio Eufrates, no Iraque.
Logo ali, poucos metros adiante, está outro faraó emblemático, Seti I, rei por volta de 1.300 antes de Cristo. Segundo faraó da 19ª Dinastia, ele herdou o trono de um tio que não tivera filhos, o grande Ramsés I, cuja múmia também está na sala. Os dois inauguram um novo tempo no Egito, em que o império das pirâmides reforça seu poderio, expandindo territórios, dominando povos vizinhos e fazendo tremer a geopolítica daqueles tempos passados. Mas ninguém se compara a outro governante, também presente nessa reunião familiar.
Chega a ser quase inacreditável quando você se vê diante, cara a cara, com um dos indivíduos mais poderosos de toda a história da humanidade. E não há exagero nesse título. Ramsés II, governante mais longevo no trono egípcio – seu reinado durou incríveis 67 anos para uma época em que a expectativa de vida era a metade disso –, é considerado por boa parte da comunidade científica que estuda o Egito Antigo o mais poderoso líder que o grande império já teve. E ele está bem na sua frente, mumificado de tal maneira que é possível perceber os traços de sua fisionomia.
Ramsés II morreu com 90 anos e a idade avançada é discernível em sua múmia. As rugas na testa longa que se unia a uma calvície pronunciada, as órbitas encovadas dos olhos, maçãs do rosto proeminentes, nariz aquilino. Parece ter morrido há bem menos tempo. Impressionantes são os cabelos que ele conserva nas frontes, aloirados, e dentes e unhas ainda preservados, 33 séculos passados desde sua morte. Os braços cruzados sobre o tronco parecem querer se mover, em um gesto, talvez convidando a uma conversa ou aceitando a reverência de um servo.
Não é possível estar diante de Ramsés II e não se lembrar que aquele corpo foi a morada de uma alma guerreira, ousada, destemida e despótica, que encabeçou a construção de alguns dos templos mais espetaculares do Egito Antigo. Ramsés II, O Grande, como era conhecido – e abominado por seus inimigos – espalhou sua efígie por todo o Egito, representado em gigantescas estátuas em que o pé direito está sempre adiante do corpo, como se estivesse num movimento de marcha. E Ramsés marchou sobre a Síria, sobre os núbios, ao sul, e também navegou.
Foi no reinado do grande faraó que o Egito lançou-se com maior força ao mar, reforçando sua hegemonia em praticamente todo o mundo ocidental conhecido. Com casamentos de conveniência – ele teve quase 10 esposas e cerca de 90 filhos –, também acabou com conflitos. Mas sua principal marca talvez tenha sido comemorar suas vitórias com grandes templos. Um do mais espetaculares é o de Abu Simbel, no sul do Egito, quase na fronteira com o Sudão, todo esculpido em uma montanha e dedicado à mais famosa de suas esposas, Nefertari.
Na antiga capital do império, Memphis, há uma estátua de Ramsés II. Na região de Luxor, onde estão o Vale dos Reis e o grande templo de Karnak, há estátuas de Ramsés II. Há menos de dois anos, na planície de Gizé, onde estão as famosas pirâmides de Queóps, Quéfren e Miquerinos, foi encontrado um imenso templo construído por Ramsés II. Durante muito tempo, acreditou-se que ele teria sido o faraó do Êxodo, aquele que teria perseguido os judeus na sua fuga do Egito, com a passagem da abertura do Mar Vermelho pelo patriarca Moisés, mas agora suspeita-se que era Tutmósis III.
Mas Ramsés II, este que nos encara agora a insignificantes centímetros de distância, é mencionado na Bíblia. E o que podemos falar a ele agora, mais de 3.300 anos depois de sua morte? Que o grande império egípcio acabou e hoje o país está muito longe do poder que um dia teve? Que abriram um canal ligando os mares Mediterrâneo e Vermelho? Que descobriram petróleo nas vizinhanças? Que o povo que fugiu dali pelo deserto tantos séculos depois chegou a tomar em uma guerra a Península do Sinai? Que sua história ainda é fascinante e que a sua múmia é atração turística?
Talvez o grande faraó, o maior de todos entre todas as dinastias, não gostasse de saber do declínio de um dos maiores impérios que já existiram e que ele ajudou a construir. Talvez não ficasse grato pela curiosidade que desperta hoje, por estar em exposição, por ser um elo material entre o hoje e um ontem tão mítico que parece impossível que tenham encontrado sua múmia em uma escavação em 1881. Ramsés II é um daqueles nomes que permeiam o imaginário global e poder vislumbrá-lo assim, de tão perto, nos coloca em uma posição improvável. Como bem disse o imperador francês Napoleão Bonaparte ao invadir o Egito: “Quarenta séculos vos contemplam.”