Para construir um grande amor: brasileiro, sobrevivente de todos esses anos de merda, neurótico, angustiado, oprimido e vivendo a contragosto em pleno jardim dos pesadelos. Mais pormenores com outros relevos: uma biblioteca desorganizada, um isqueiro sem gás, os concertos brandeburgueses, um quadro reproduzido de Van Gogh, duas fotos de divas nuas, uma máquina de escrever, noites de chope e humor, conspirações, revistas francesas, programas velhos de recitais, o pavor da repressão, Os Deuses Malditos (o último filme de Visconti), o artigo abandonado no fundo da gaveta, Dominique Sanda, a paixão pelo teatro, os dois concertos para piano e orquestra de Brahms, a ilusão do tempo perdido, o voo espacial do Apollo 11 levando três astronautas, “o dragão da maldade contra o santo guerreiro”, o amigo recentemente preso e o grande fascínio pelo mundo e pelas decifrações, a indignação, uma folha de papel em branco, o momento em que as teclas escrevem: uma vez em novembro, 1969, uma cidade, uma rua, um quarto, uma escrivaninha, um silêncio carregado de insinuações, os dias pela frente – o imaginário de uma época que se constrói aos poucos, por meio de fiapos da lembrança…
Eis aqui um breve começo, Alice, para as nossas memórias, testemunho de um tempo que se recusa a morrer em nós. Basta apenas alguém puxar a cortina para começarmos o espetáculo, essa tragédia (ou comédia?) que se chama representar a vida, educar as pessoas ignorantes da exploração a que são submetidas, descobrir caminhos, revidar ataques, destruir os fantasmas dos sonhos mal construídos. A espera de que, finalmente, tenhamos coragem suficiente para mudar os mitos dos pedestais, das prateleiras, das vitrines, dos vídeos, dos jornais, das latrinas. Os obscenos massacres, como em Santa Maria de Iquique, desejo de ser não apenas um nome inútil e sem significação, de compreender a hora dos loucos (esses loucos que movem o mundo), de afastar essa ameaça de destruição que cresce em torno da nossa casa e nos sufoca na rua. E para piorar tudo, o desgraçado general Médici abre as portas do inferno.
O espetáculo continua, tragédia ou comédia, Alice. Estamos vivendo uma época em que operários e estudantes, de repente, quem sabe para qual destino?, desaparecem misteriosamente – e os jornais, essas páginas diárias e domésticas, entram em nossas casas com silêncio e mentiras. Quem se lembrará desse vendaval? A não ser o papel em branco, no qual deposito flashes, instantes, fragmentos – todos mosaicos de um ano que resiste como uma bactéria que habita os nossos neurônios. Leio todos os dias que é preciso manter a ordem e a paz, tudo caminha bem no mundo ocidental graças ao bom Deus, estamos fortes e sadios, calmos e dispostos para as grandes jornadas cívicas, nossos filhos crescem não sei para qual futuro, os assassinos mostram os seus dentes e as suas armas, veja bem, ali caiu o operário, a rua ficou assim, blá-blá-blá, era um herói anônimo do urbanismo, do capital que avança em nossas cidades construindo prédios e destruindo a visão das colinas cobertas de verde. Um avião, um grito, o demônio, a fome, o susto, uma arma apontada para a nossa cabeça, uma carteira de identidade, as heranças nefastas, o colonialismo, as epidemias, o rock, uma experiência científica, uma exótica mulher falando na tevê sobre os tempos modernos, uma música que rememora os anos 1960, um paralelo entre o bem e o mal: é a vida, Alice, esmagada no ponto final.
E pode ser que coisas bem piores venham por aí. Então, prepare-se, irmão – irmão de sangue, de chope, de alegrias –, quando eles chegarem, repare bem os seus olhos, as suas roupas e a ameaça escondida – o inimigo se disfarça para se parecer conosco. Con nosotros, gringos, irmãos das mesmas misérias, seja no Chile, seja na Argentina, seja no Uruguai, seja aqui mesmo, onde, sem perspectiva de mudança, nos perguntamos se a poesia ainda vale a pena.
Uma viatura da polícia suja a cidade e mancha a beleza da tarde. É provável que a maioria das pessoas, nesta cidade de frondosas árvores e tédio venenoso nos alpendres, admire, cúmplices, esse símbolo da morte, essa imitação de coche funerário que nos transporta, nossas pobres e disfarçadas ideias – as que provocam contravenção e desordem –, para salas onde ternos cassetetes acariciam o nosso lombo. Não é nada disso, Alice, tudo não passa de um delírio da juventude. Dissimulemos, resistamos e amemos com libertinagem. Eu só quero ouvir a Sinfonia Concertante para Violino, Viola e Orquestra em Mi Bemol de Mozart, num domingo em que estiver infinitamente triste e sozinho, sem nenhum objetivo na vida, longe dos rumores familiares, fumando o meu dileto cigarrinho.
Teu corpo não mata a minha sede, Alice, este verão trouxe um calor fora das previsões, crianças foram internadas às pressas, a piscina é azul como o céu e o sertão mais deslumbrantes. The Epic of Man: um livro com a memória da espécie e impressionantes ilustrações de homens pré-históricos, o elo perdido que só eu encontrei naquela sala, várias referências a um Pithecanthropus erectus andando na terra perdida de Pal-ul-don, esse homem fantástico e altruísta que E. R. Burroughs nomeou de Tarzan.
Uma conversa sobre luzes e alturas, o longe e o perto, o lugar onde pretendo chegar um dia ou você, Alice, antes de mim, antes de essa aventura me sufocar, antes que a memória mais inocente não consiga reproduzir o tempo que nós estamos vivendo, juntos, infelizes, angustiados, mas ainda com algumas certezas, pelo menos a mais importante, a de que é preciso seguir sempre em frente, não importam os esforços dos homens perturbados que pretendem nos aniquilar.
Permanecer inquieto, procurando equilíbrios menos falsos, desprender-se de bens de sangue que não valem a transfusão, amar um corpo abandonado em lençóis, ser marginal, vigiado e viciado à noite (tanto faz), duvidar sempre das leis perenes, romper com as falsas obrigações. Ou inversamente, à moda do pequeno-burguês: deitar-se sempre cedo, escovar os dentes com dentifrício milagroso, casar-se com uma mulher respeitável e de tradicional família, ter um emprego seguro, de preferência numa embaixada, condenar a boemia, investir no mercado de capitais, amar ao próximo com mascarados sentimentos, assistir às demonstrações cívicas, elogiar discurso de ministro na tevê, bajular os políticos safados em busca de favores, deixar de fumar com medo de câncer, ser sócio de instituições fechadas e ler os jornais sem pavor do mundo: há milhões de ofertas no jardim dos prazeres (ou dos pesadelos), faça a sua opção, escolha a que lhe for melhor, uma que sobretudo enalteça a sua mediocridade.
Eu ouço uma canción desesperada de Violeta Parra, essa tristeza latino-americana que vem dos países pobres, ou seja, das vozes de todos os pueblos desconhecidos e oprimidos ou das cartas dos amigos que não puderam ficar e purgam o exílio. Eu vejo – os olhos abertos e acusadores – e seguro a minha vida como se me agarrasse a uma raiz profunda e espero que aconteça alguma coisa de real (ou irreal?) nesse absurdo paraíso de maçãs podres, plantas que causam alucinação e festas populares para divertirem a sanha dos turistas.
Estou presente no dia, nos acontecimentos, nas brutalidades, nos desânimos, nas perseguições, nas censuras, nos crimes nefandos cometidos pelo Estado. Como em todas as crises, alguém pede calma e esperança: existe um longo e belo programa para se viver nos shoppings as fantasias da classe média. Acordo de manhã e ativo a linguagem, a linguagem na qual circulam todas as noções e critérios de realidade. Sou um corpo que aprendeu a calar-se. Sou um corpo que levou um bocado de porradas. Sou um corpo inúmeras vezes crucificado por causa de ideias divergentes. Em outras palavras, somos um corpo único que funciona pelo avesso. Escrevo, meio distraído: você já deve estar de saco cheio com uma porção de coisas ocidentais e acidentais. Ainda está suportando as ameaças que, como um ar podre, sufocam a nossa cidade provinciana? Nessa anarquia pelo menos alguém está lúcido e sabe ser solidário quando é preciso amar os gestos interrompidos de revolta e desobediência diante das atrocidades consensuais. Use a linguagem e as suas belas formas, abra a boca, fale, cante, sorria, compre um mimeógrafo e imprima ideias, distribua pelas ruas os seus gestos, a sua liberdade, a sua vontade de alterar as estruturas carcomidas e viver depois o sonho de um novo mundo. A linguagem existe para isso mesmo: para provar o gosto da significação e combater o modo burguês de vida. No princípio era o verbo, você se lembra?, e aí vieram as Testemunhas de Jeová, e depois ficamos sozinhos, definitivamente sós e traídos, ameaçados por armas que pensam poder nos empurrar para sempre contra a parede.
O tempo abre-se ao convívio, a todo tipo de experiência e solicitações, à minha solidão e alegria, às paisagens repletas de sol, à lembrança do que fomos e fizemos. A quem deve interessar mais, senão a mim mesmo, esse exercício prático de viver, essa confusa repetição dos dias, todas as emoções cotidianas convertidas em aprendizagem, todas as experiências que fiz comigo mesmo, com as minhas misérias diárias e com aquelas aprendidas dos outros? Como alguém que reconhece o seu erro e busca em seguida o acerto, eu me revi, me julguei e procurei me entender: como somos, como nos sentimos e como vivemos nesta altura do Zodíaco (os astros não falam por nós?) e isso ainda não é tudo: onde estaria a minha fera, em qual labirinto nós nos desencontramos? O amor, mais forte do que outro sentimento, deu-me o prazer e a contradição. Ambos, mais fortes que tudo, deram-me um barco e águas turvas. I love you – a primeira frase, como todo estudante sentimental e colonizado, decorada e escrita nos cadernos e muros. Depois, foram aquelas frases temerárias pichadas com medo e raiva durante as madrugadas, na certeza de que elas trariam outra manhã, mais luminosa e triunfante: a nossa manhã de carnaval.
O amor é outra descoberta ou aventura, Alice, e depois tudo acontece em torno dele, com ondas más e boas. Se você me entende, é preciso ainda esperar outro dia: as coisas andam devagar, as pessoas andam devagar, a História devagar se escreve nos muros e cadernos. Nós estamos aqui, na América Latina, todos os dias, descobrindo as surpresas de um mundo diversificado, brutal e assassino. Pero cheio de promessas: o futuro é aqui mesmo? Ó mestres da minha biblioteca, libertem-me do medo de ser vítima. Modestamente, confesso, a quem tiver interesse, que estou livre e desequilibrado, boxta vita est, a felicidade repousa na droga dos comprimidos quando a tristeza engole os corações mais simples. Suave é a noite, suave é o molotov e suaves são ainda as mãos desse general no momento em que ele retira as suas delicadas luvas para assinar mais um ato que entrega o país ao capital estrangeiro.
Um dia, não sei quando, mas é necessário acreditar nessa possibilidade, as crianças pobres da minha cidade conhecerão outra história para suas vidas, não a que elas aprenderam de nós, na infância e no terror, mas a que nós estamos tentando fazer para elas e a que elas farão em seguida para os seus filhos e a que esses filhos farão, muito tempo depois, para quem conseguir sobreviver nesse movimento dialético que se chama luta de classes. Ao menos nisso é preciso acreditar, Alice, no país das maravilhas (ou da violência colonial) – é preciso crer em alguma coisa para não ficarmos loucos e ocos. Um enigma que nos afronta, Alice, e o mistério dos trópicos me fascina; um corpo morto na calçada esperando a faxina; o meio ambiente do país, a nossa luta contínua; a sua fantasia de carnaval, manhã de neblina; a mão fechada para o alto, grito em surdina; o medo na lata de lixo, cabeça pensando sem aspas e aspirina.
Alice, boneca de trapos, porta-estandarte de escola de samba, bailarina dos oprimidos e santinha dos aflitos: eu subjugado, eu renegado, eu dividido ao meio, eu exposto ao sol e só palavras, eu me afogando no pesadelo, eu morrendo de achar graça das coisas, eu amor mais que perfeito, eu sintaxe que imagina o futuro, signo obscuro, eu textualmente, eu até não sei quando, eu vivendo na América dos teus olhos, eu, não como eles querem, na certeza da cega obediência – assim eu termino, com pesar: adeus, Marighella, adeus, 1969 – o ano que estamos terminando penosamente de atravessar, sem saber, porca miséria!, se os próximos darão frutos mais saborosos.