[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
Embalo
Onde quer que estiveres
entregue ou fugitivo
verás o que não queres
na morte e no estar vivo.
Onde quer que banhares
a carne e os pensamentos
virão de outros lugares
banhar-te outros momentos.
Onde quer que dormires
será teu sono prece
que sobe em arco-íris
e sem que alcance desce.
[2]
Três canções na areia
I
É uma mulher na praia,
presença brusca do céu.
São mãos que ensaiam na areia
as carícias que virão.
É um murmúrio de lábios
no vento que vem do mar.
São desejos nas espumas
que nunca irão a Goiás.
É uma canção na praia,
o mar entre mim e a dor.
II
Um pouco de mim vem vindo
da vida que eu quis viver.
Afinal entendo as ilhas
e o pranto que não voltou.
Nasce em mim um arco-íris,
logo abraça a terra e o mar.
III
Achei versos que Anchieta
noutras praias escreveu.
Achei auroras e fugas
achei você, achei eu.
[3]
Toada goiana
Correr chapadas e serras
cobertas de casimira.
As noites que lá se foram
voltam dançando, e a catira
que se escuta sempre longe
é doce ̶ ainda que fira.
O vento dá na roseira,
mas meu bem, ninguém me tira.
Quem ama, reclama e chora,
canta e suspira.
As muitas matas, as muitas
solidões… que amor as planta?
Quero bem a uma menina
que vê-la é ver uma santa.
Deixei-a, vim correr mundo.
Agora tenho a garganta
atravessada do espinho
desta saudade que é tanta.
Quem ama, chora e suspira,
reclama e canta.
Poeira em giros vermelhos,
e o tempo já foi de lama.
Sete cravos, sete rosas ̶
é pouco para quem ama.
Sete cartas de lembrança ̶
e a ingrata, que não me chama!
Faço fé que ainda me lembra,
pois sou goiano de fama.
Quem ama, suspira e canta,
chora e reclama.
O vento vem, dá na vida.
Mas a terra ̶ é em mim que mora.
Passarinho do coqueiro,
do meu bem fala-me agora:
se está morto, se está vivo,
se casou, se foi embora.
Vem a seca… Vêm as águas…
E a resposta já demora.
Quem ama, canta e reclama,
suspira e chora.
[4]
Trocadero, 1955
Enquanto eu te esperava, enquanto se desfazia
a espuma no copo de cerveja, eu ia escrevendo
palavras sem sentido e nenhum nexo numa folha
de papel que, como a recortar um lagarto
cujos pedaços continuassem teimosamente vivos,
rasguei em pedacinhos, cada um deles
com uma letra e cada sequência de letras,
como se num sonho ou num poema dadaísta,
dando um sentido ao que dentro e fora
de mim se passava e se resumia num grito mudo
de quem se despede e sabe que está se despedindo
para sempre, e sabe também que numa despedida
pedaços de nós como que amputados se destacam
e vão ficando teimosamente vivos pelo caminho.
[5]
Desenho de Debret
Esmaecidos ̶ o ângulo da igreja, a cruz altaneira.
Esmaecidos ̶ o casarão senhorial, os populares, o soldado,
como se fora outro o mundo do outro lado da praça pública.
De súbito ergue-se o açoite, ergue-se com dedos inflamados,
que vibram no ar fazendo em volta um vivo colorido.
E há então os escravos que amarrados aguardam o açoite,
e há os já açoitados a lembrarem caveiras em transe,
e há o escravo que açoita e um dia foi também açoitado,
e usa de toda a força porque um dia será de novo açoitado.
E há, antes de tudo, estas negras nádegas que sangram.
Perfil
Afonso Felix de Sousa nasceu em Jaraguá (GO) em 5 de julho de 1925 e morreu no Rio de Janeiro em 7 de setembro de 2002. Após morar em Pires do Rio, Catalão e Silvânia, fixa residência em 1943 em Goiânia, onde inicia carreira no Banco do Brasil e publica, na revista Oeste, artigos, poemas e contos. Participa da fundação da seção goiana da Associação Brasileira de Escritores. Em seguida, por volta de 1947, já residindo no Rio de Janeiro, passou a ocupar cargo importante na matriz do Banco do Brasil. Em 1953, é contemplado com uma bolsa para estudar economia internacional na École Pratique des Hautes Études e realizar estágio no Banco da França. Casou-se em 1959 com a escritora Astrid Cabral. Em 1962, passou a residir em Brasília, para onde foi deslocado. Da Capital Federal, em 1970, transferiu-se para Beirute, para ocupar o cargo de adido na Embaixada do Brasil. A partir de 1986, passou a morar em Chicago, acompanhando a sua esposa, que foi designada para servir no Consulado Brasileiro. Nos Estados Unidos, dedicou-se à tradução e realizou conferências sobre literatura brasileira. A sua obra poética e em prosa compreende os seguintes títulos: O túnel (1942), Do sonho e da esfinge (1950), O amoroso e a terra (1953), O memorial do errante (1956), Íntima parábola (1960), Caminhos de Belém (1962, auto de Natal), Do ouro ao urânio (1969, crônicas), Pretérito imperfeito (1976), Chão básico & itinerário leste (1978), Antologia poética (1979, nova edição aumentada), As engrenagens do belo (1981, reunião de sonetos), Rio das Almas (1984, poema dramático), Quinquagésima hora & horas anteriores (1987), À beira do teu corpo (1990), Nova antologia poética (1991) e Chamados e escolhidos (2001, reunião de poemas). Traduziu, de Federico García Lorca, Romanceiro gitano (1957), Sonetos do amor obscuro e Divã do Tamarit (1988); de John Donne, Sonetos de meditação (1987), e de François Villon, Testamento (1987). Organizou ainda o livro Máximas e mínimas do Barão de Itararé (1985). Recebeu inúmeros prêmios, entre os quais o Prêmio Olavo Bilac (1957), o Prêmio Jaburu (1990) e o Prêmio Nacional de Poesia (2001) da ABL. Em texto para a Nova antologia poética (Cegraf-UFG,1991), Darcy França Denófrio destaca que “apesar de realizar uma poesia lúcida e comprometida com a sua própria natureza, ou seja, que pretende, acima de tudo, realizar arte, vai mais além. Ao lado de poemas metalinguísticos, cuja linguagem narcísica se dobra na contemplação da própria linguagem poética, e ao lado mesmo de um número altamente expressivo de contidos sonetos, inclusive aqueles à moda inglesa, Afonso espraia-se também em longos poemas com traços épicos (ou narrativos). Dentre estes estão aqueles ligados ao seu Estado natal, a exemplo de ‘A noiva do sobrado’, ‘A moça de Goiatuba’ e tantos outros, em que comparece um tom eminentemente popular, conferindo certa leveza à sua obra.”