[Cristóvão Giovani Burgarelli**]
A experiência de uma universidade federal está apoiada em três pilares fundamentais e indissociáveis: ensino, pesquisa e extensão. O ensino convoca que pesquisas sejam realizadas, a pesquisa torna possível a extensão e, por fim, a extensão assume o papel de apresentar e justificar para a sociedade o trabalho realizado dentro das universidades, corroborando a importância de um ensino que não seja enviesado por quem o financia, que seja capaz de contemplar mais do que apenas a elite e que entregue resultados notoriamente positivos – em outras palavras, um ensino público, gratuito e de qualidade.
Nesse sentido, essa parte prática do ensinar, do pesquisar, ter resultados empíricos que possam retornar à sociedade e fazer girar a roda da universidade é sim muito importante e vital para a sobrevivência da instituição. No entanto, é em defesa de uma outra parte, comumente considerada menos importante ou até mesmo desnecessária, que este artigo se posicionará: sua tese fundamenta-se na inter-relação radical entre aqueles saberes teóricos que supostamente são inúteis para que avancemos como sociedade (como vemos na filosofia, na sociologia e em muitas criações das ciências humanas) e aqueles técnicos que perfilam no senso comum como utensílios imprescindíveis.
Não é incomum que se ouça, desde as etapas primárias do ensino fundamental, o estudante se questionando sobre o porquê de estudar certas coisas. Aprender a ler, escrever e somar até tudo bem, geralmente a importância destes é sabida. Mas o aluno frequentemente se questiona sobre a utilidade prática da trigonometria e da análise sintática, a real necessidade de compreensão da tabela periódica e dos movimentos geofísicos, a inter-relação da elaboração científica com os fundamentos literários, filosóficos, sociológicos, etc.
Diz-se muito sobre a importância da inserção cada vez maior de conteúdos práticos – educação financeira, empreendedorismo, elétrica, culinária, etc. – dentro das escolas, em detrimento por exemplo dos aprofundamentos em filosofia e sociologia (porque, afinal, o aluno não precisa pensar; precisa produzir). Nas universidades esse momento de conflito é potencializado, agora, com o plus de uma sociedade que espera que o jovem profissional saia com a maior carga de conhecimento técnico possível. É apenas isso que ele deve dominar: a técnica, e o lugar da universidade não é mais, como já foi, de formação integral do homem.
Por que, afinal, estudar algo que não é tangível, que muitas vezes pode ser discutido apenas de forma subjetiva? Bom, primeiro porque o ser humano é muito mais do que a carga técnica pode oferecer; apesar de a lógica utilitarista sob a qual vivemos sempre apontar para o contrário, é uma necessidade humana alimentar sua subjetividade, seja por meio da arte, da literatura, seja pelas indagações filosóficas, etc. Segundo porque teoria e prática estão intrinsecamente ligadas, bem como as ciências humanas e as ciências exato-biológicas.
A filosofia em si é a mãe de todas as formas de conhecimento – uma breve revisão da história da epistemologia pode confirmar essa sentença. Veja bem, Anna Carolina Lo Bianco e Fernanda Costa Moura escrevem de forma muito inteligente em seu artigo “Inovação na Ciência, Inovação na Psicanálise” (Revista Ágora, Rio de Janeiro, v. XX n. 2 mai/ago 2017) sobre o que significam, na modernidade ocidental, as inovações científicas. Perceba que até nas grandes revoluções burguesas as inovações eram basicamente experimentais. Sem o auxílio de cálculos matemáticos mais complexos, construía-se e pensava-se apenas a partir do que era tangível.E dessa forma não podemos negar que muitos saberes e artifícios foram criados, mas seria a criação a razão última da curiosidade humana? Em seu texto, as autoras dão o exemplo dos óculos – na Idade Média, os óculos já eram uma realidade. Não era incomum encontrar artesãos que sabiam manejar as lentes para corrigir os mais diversos problemas de visão. Porém, só muitos séculos depois, Kepler e Descartes conduziram as pesquisas sobre o fenômeno da refração da luz.
A pergunta, então, é: quem foi mais “útil” para o desenvolvimento da sociedade, os artesãos ou esses cientistas?
Pode se dizer que foram os artesãos que permitiram que, ainda na Idade Média, a qualidade de vida de pessoas com problemas de visão fosse exponencialmente melhorada. Mas perceba que, se não fossem Kepler e Descartes com sua curiosidade e suas intensas revisões de teorias, cálculos com as mais malucas abstrações e princípios filosóficos, Galileu não teria substrato para desenvolver, mais tarde, o seu telescópio. Temos, nesse caso, a prática que se tornou teoria; mas façamos também o caminho inverso, da profunda abstração que se tornou indispensável para a realidade.
Quando Einstein concebeu sua teoria da relatividade a partir de – adivinhe! – mera teoria, não teve, de imediato, uma grande aceitação no meio acadêmico, justamente por parecer pensar algo distante demais da realidade, algo até impossível de ser provado. Bom, hoje sabemos que o GPS, as televisões de tubo e os eletroímãs só funcionam devido aos efeitos relativistas. É importante perceber justamente esse movimento do conhecimento que vai e volta da teoria à prática, de modo que nenhum desses dois polos deve ser subestimado.
A universidade, como às vezes é percebida, não é uma bolha separada do restante do mundo. Nesse sentido, não é de se espantar que o próprio estudante esteja também imerso nessa realidade; existe um movimento dos alunos de talvez inconscientemente subestimar a parte teórica das grades disciplinares. É fácil perceber que dentro da própria universidade, inclusive nos cursos de ciências humanas, a grande maioria dos discentes espera com fervorosa ansiedade as disciplinas que lhe ofertarão um conhecimento prático para sua profissão, enquanto olha com desprezo as de caráter filosófico.
A própria implementação da PCC – Prática Como Componente Curricular – é, por exemplo, uma resposta a essas demandas por um ensino mais prático e mais técnico. Todo esse contexto parece se adequar muito bem à nova palavra de ordem que vem do próprio ministro da Educação: “eficiência”. A chave da questão é que, como bem disse o prof. Luis Felipe Miguel (Jornal GGN, 18/02/2019), “a universidade não precisa de ‘empreendedorismo’, precisa de pensamento crítico. Os ingênuos podem perguntar: mas uma coisa é incompatível com a outra? É, sim: o ‘empreendedorismo’ exige assumir como próprios os imperativos do mercado que devem ser alvo do pensamento crítico”.
E como o empreendedorismo, os demais saberes técnicos que se pretendem inserir na “nova escola” se tornam absolutamente bitolados se forem oferecidos aos estudantes numa realidade que pretende deixar para trás as demais formas de conhecer o mundo. A mente a que só foi ensinado pensar o meramente concreto se torna atrofiada e incapaz de perceber o que se passa por detrás dos panos. Assim, esse projeto de educação capaz de transformar toda uma juventude em máquinas de reprodução de técnica em nome de “eficiência” deve ser revisto com urgência.
** Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (graduação em Pedagogia, mestrado em Psicologia e mestrado e doutorado em Educação) e psicanalista.
Parabéns Isabela pela reflexão, com alteridade e autonomia!!! Foi um prazer para mim ter contribuído um pouco.