[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
Sol dos cegos
1.
No cerne do instante
nada nos vê nada vemos
não nos explica o que somos
o que seremos
Matéria sem sonhos – nítida
matéria – nele nos temos
2.
Sou astro, não sou estrela
meu calor não irradia –
a chama que me aquece
é fria
Sou astro, não sou estrela
minha luz não ilumina –
é lâmina com que me sangro
a retina
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[2]
A roupa do rei
Estamos gastos sim estamos
gastos
O dia já foi pisado como devia
e de longe nosso coração
piscou na lanterna sanguínea dos automóveis
Agora os corredores nos deságuam
neste grande estuário
em que os sapatos esperam
para humildemente conduzir-nos a nossas casas
Em silêncio conversemos
Que fazer deste ser
sem prumo
despencado do extremo de um dia e
que o sono ainda não recolheu?
Não nos indaguemos
Para que indagar matéria de silêncio
Procurar a nenhuma razão que nos explique
e suavemente nos envolva
em suas turvas paredes protetoras
Nada de perguntas
A campânula rompeu-se
O instante nos ofusca
A quem sobra olhos resta ver
um ser nu a vida pouca
Só dentes e sapatos
de volta para casa
Nenhum passo à frente
ou atrás
De pés firmes
o corpo oscilante
neste suave embalo da mágoa
descansemos
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[3]
Briga
Eu vou aguentar
Eu sou mais forte porque
sei que ele é mais fraco
Aí ele entrou no banheiro
tomou banho
e saiu de novo pra rua
Não se meta na minha vida
enquanto você falar pra eu não fazer
eu faço
Quanto mais você fala
mais eu faço
Saio daqui todo dia
às onze da noite
Não vou bater nele
se eu der um tapa
ele cai
Não é justo a gente viver
eternamente se sacrificando
tem uns três anos que estou nessa
dois empregos
já operei do coração
Devia ser um exemplo um estímulo
Já vi que não sou
sou a derrota
Um dos dois tem que ficar
Quem vai cuidar dos meninos?
Se ele ficar doente
eu fico boa
Deus vai me ajudar
vai me dar coragem
O povo já fala
o homem da casa sou eu
Não deixa ele saber
Ele vai virar bicho
Eu não falei nada
• • •
[4]
Sombra
Chove nos edifícios
e na erma galeria
de esquadrias de vidro
sujo
Chove nos edifícios
e também em tua sombra
de bípede que palmilha
esta e mais outra trilha
Aquele edifício negro
na sombra amarela, imensa
assombra toda a cidade
A ti, não
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[5]
Elefante
O ar de tua carne, ar escuro
anoitece pedra e vento.
Corre o enorme dentro de teu corpo
o ar externo
de céus atropelados. O firmamento,
incêndio de pilastras,
não está fora – rui por dentro.
Reverbera no escudo o brilho baço
do túrgido aríete
com que distância e tempo enfureces.
Teu pisar macio, dançarino,
enobrece os ventres frios,
femininos.
A tua volta tudo canta.
Tudo desconhece.
Perfil
Francisco Soares Alvim Neto nasceu em Araxá (MG) em 1938. Iniciou o curso de Direito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mas abandonou-o por ter ingressado no Instituto Rio Branco, onde se formou. Foi nomeado secretário da representação do Brasil junto à Unesco em Paris. De 1995 a 1999, ocupou o cargo de cônsul-geral em Barcelona e, de 1999 a 2003, em Roterdã, na Holanda. Aposentou-se do Ministério das Relações Exteriores em 2008, depois de se tornar embaixador na Costa Rica. Sua carreira literária como poeta teve início em 1974, com o lançamento de Passatempo, pela coleção Frenesi, nome adotado pelo primeiro grupo da Poesia Marginal, que teve projeção na década de 1970 e foi representado por intelectuais como Roberto Schwarz, Cacaso, Chacal e Geraldo Carneiro. Em sua linguagem poética, entre outros traços, encontramos o coloquialismo, a brevidade dos versos, o humor, a espontaneidade e a veneração a Drummond. Em 2011, por ocasião do lançamento de Metro nenhum, afirmou em entrevista à Ilustrada, suplemento cultural da Folha de S. Paulo, o seguinte: “Meus livros acompanham de perto o que vou vivendo. Têm um forte lastro de minha experiência pessoal, o que não significa que se atenham a ela. Partem dela para chegar à do outro, para imaginar, sentir e pensar a do outro. Assim, penso melhor a minha. Cada período de vida marca um tempo da escrita.” Por duas vezes, recebeu o Prêmio Jabuti, em 1982 e 1989, e o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte, em 2011.
O artigo sobre Flaubert ficou com gosto de quero mais. Parabéns ao autor. Me encantei com a poesia cotidiana de Alvim. Parabéns Luís Araújo Pereira pela esmerada curadoria.