Professor da PUC-Rio, o filósofo Eduardo Jardim é conhecido pela sua larga produção intelectual, que abarca áreas como a filosofia política, a estética e a história das ideias no Brasil – ele publicou, inclusive, uma biografia sobre Mário de Andrade, intitulada Mário de Andrade: a Morte do Poeta (Civilização Brasileira). Eduardo Jardim também é reconhecido como um importante intérprete no país da obra da filósofa Hannah Arendt, sobre quem publicou dois livros: A Duas Vozes: Hannah Arendt e Octavio Paz e Hannah Arendt – Pensadora da Crise e de Um Novo Início, ambos também pela Civilização Brasileira.
Recentemente, o professor e filósofo esteve em Goiânia para participar do 10º Encontro Internacional Hannah Arendt/6º Colóquio Pensamento Político Contemporâneo, de 13 a 17 de junho na UFG. Jardim fez a conferência de abertura do evento, denominada Como Curar um Fanático? Hannah Arendt e Amós Oz. Procurando estabelecer uma relação entre o pensamento de Arendt e a literatura do escritor israelense Amós Oz, ele destacou a ideia de mentalidade alargada – que Arendt extrai da obra do filósofo alemão Immanuel Kant – para pensar formas de resistência aos diversos tipos de fanatismo que se impõem no mundo contemporâneo. Confira a seguir a entrevista que o pesquisador concedeu a Ermira, na qual abordou esses temas.
O que significa ter mentalidade alargada?
Uma pessoa com o pensamento alargado tem a capacidade de se deslocar do seu ponto de vista egoísta para o ponto de vista dos outros, até dos que pensam de forma contrária a ela. Esse alargamento da mentalidade eu acho importante Hannah Arendt ter sublinhado e ela leu o Kant valorizando isso.
Hannah Arendt valoriza muito também a política local, por exemplo, no livro Sobre a Revolução, no qual ela destaca a atuação dos conselhos populares, em nível local. Como conciliar a valorização da política local com essa mentalidade alargada, cosmopolita?
A política local que ela valoriza, o funcionamento dos conselhos que ela valoriza, essas experiências locais são fóruns em que há uma grande multiplicidade de pontos de vista, não interessa que seja um pequeno grupo ou um grande grupo. O importante é que, dentro desses contextos de discussão, haja a possibilidade de muitos pontos de vista poderem comparecer, se confrontar e discutir.
Hannah Arendt
Nascida em Hannover, na Alemanha, em 1906, no seio de uma família judia rica e intelectualizada, Hannah Arendt é autora de grandes clássicos do pensamento político contemporâneo, como Origens do Totalitarismo, A Condição Humana e Sobre a Revolução. Para escapar da perseguição nazista, ela refugiou-se nos Estados Unidos em 1941 e foi professora por anos da New School for Social Research, em Nova York. Hannah Arendt morreu em 1975.
É na verdade uma postura de abertura para o outro?
Exatamente. E abertura também no sentido de reconhecer o outro como alguém diferente de você. A ideia de Hannah Arendt não é de tornar todo mundo igual. Ela não tem uma perspectiva de criar um consenso. Ela não quer que todo mundo seja igual, mas que posições diferentes possam participar de um grupo de discussão.
Uma outra noção que Hannah Arendt recupera de Kant é a de senso comum. Ela observa que o senso comum está como que atrofiado no homem moderno. De que forma se dá essa atrofia?
O senso comum para Hannah Arendt tem a ver com duas coisas. Tem a ver com a confiança de que nossos cinco sentidos possam ser organizados por um sexto sentido, um sentido comum, que nos dá acesso à realidade. E a outra ideia é de que existe um mundo comum que é partilhado por uma comunidade. Ela acha que essas duas ideias, essas duas experiências, perderam força em nossa sociedade. Arendt faz a defesa de uma revalorização do senso comum. Normalmente, as pessoas falam do senso comum como uma banalidade. Ela não está falando de banalidade. Está falando de um sentimento comum, que possibilita que a gente partilhe o mundo.
Outro conceito que ela vai também retomar de Kant, da Crítica do Juízo, é o de imaginação. Qual seria a dimensão política da capacidade de imaginação?
A gente não tem a capacidade de concretamente se pôr no lugar do outro. O pensamento se alarga na medida em que, pela imaginação, nós representamos o lugar do outro, a figura do outro. Por isso, a imaginação é tão importante.
Imannuel Kant
Um dos filósofos mais influentes da história da filosofia, Kant nasceu em Könisgberg, na Alemanha, em 1724, e morreu na mesma cidade, em 1804. Sua obra monumental abarca a epistemologia, a filosofia moral, a filosofia política, a estética, entre outros campos do saber. É autor, entre outros, de Crítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática, Crítica do Juízo e A Paz Perpétua.
Na sua palestra o senhor tentou fazer uma aproximação entre a filosofia de Arendt e a literatura do escritor israelense Amós Oz. Em que medida existe uma afinidade entre o pensamento de ambos?
Hannah Arendt era uma leitora de literatura maravilhosa. Tinha a maior atenção com a obra literária. Achava que a gente aprendia muito, em filosofia também, com os grandes escritores. Hoje, ela seria uma leitora muito atenta dessa literatura que está sendo feita em Israel. A impressão que eu tenho é que o tratamento que Amós Oz dá entre o conflito entre Israel e Palestina tem muito a ver com a ideia de mentalidade alargada que está presente em Hannah Arendt. Amós Oz diz que “a cada dia, quando eu acordo, eu busco me pôr na posição de um palestino”. Isso é o mesmo procedimento usado pela Hannah Arendt quando ela vai definir o que é mentalidade alargada. É se pôr, pelo menos no nível da imaginação, do ponto de vista do outro.
Logo da criação do Estado de Israel, Hannah Arendt disse que Israel estava se formando nos mesmos moldes do Estado-nação europeu, do qual ela era uma grande crítica. Isso se aproxima de alguma forma das ideias de Amós Oz?
O argumento de Hannah Arendt era de constituir uma comunidade com dois povos. E essa ideia que ela defendia, que não comportava o conceito de Estado nacional europeu, não comportava a ideia de Estado sequer, essa posição foi vencida, e o Estado de Israel se firmou como um Estado nacional, igual à França, à Alemanha. Existem certos personagens da literatura do Amós Oz, como Abranavel, um personagem fictício, que foi chamado de traidor por aqueles que ganharam a situação em Israel justamente porque ele defendia posições muito parecidas com as de Arendt.
Amós Oz
Nascido em 4 de maio de 1939, em Jerusalém, o escritor israelense Amós Oz tornou-se conhecido não só por sua obra literária, mas também pelo seu ativismo político. Cofundador do movimento Paz Agora, que luta pela convivência pacífica entre judeus e palestinos, é autor de vários romances e ensaios, entre eles De Amor e Trevas, Judas e Como Curar um Fanático.
O título da palestra do senhor é Como Curar um Fanático. Como o senhor caracterizaria o fanático? E é possível, de fato, curá-lo?
O fanático é aquele que sempre tem razão. É aquele que não admite não ter razão. Amós Oz cita um verso de um poeta israelense chamado Yehuda Amichai, que diz “onde temos razão/ as flores não nascerão”. Isso caracteriza o pensamento fanático. Para Hannah Arendt, ou para Kant, ou para Amichai, o exercício da imaginação, que possibilita se pôr no lugar do outro, pode não ser um remédio completo, mas é um bom remédio contra o fanatismo.