Uma breve interjeição de surpresa – um sutil “oh” –, um jeito muito específico de se sentar, a vigilância constante para não deixar transparecer em público sentimentos mais intensos, um olhar que mistura resignação e tristeza, a amargura de não ter controle sobre a própria vida expressa no contorno da boca voltado para baixo, como se fosse uma máscara de teatro. Compor um personagem que exige tal construção artesanal já é uma missão difícil. Quando essa personagem é uma das pessoas mais conhecidas do mundo há mais de seis décadas, tudo fica ainda mais complexo. As atrizes da série The Crown, porém, deram conta do recado. Magistralmente.
Disponível na plataforma de streaming Netflix, o projeto teve como proposta retratar a realeza britânica, a Coroa, da segunda metade do século 20 até os dias atuais, com foco no reinado de Elizabeth II, a monarca mais longeva de toda a história da monarquia britânica. Um período que inclui a morte do pai de Elizabeth, o rei Jorge VI, sua ascensão ao trono e todas as crises, escândalos, conflitos e dilemas enfrentados por alguém que tem um poder simbólico imenso, mas nem sempre pode fazer o que deseja, refém de ritos que invadem até mesmo a vida mais íntima, interferindo nas relações afetivas e criando traumas e rancores intransponíveis.
Longe de glamourizar todo aquele universo que, muitas vezes, parece descolado da realidade, com luxos e ostentações inacreditáveis, a série, que tem três temporadas lançadas – e as duas últimas já em produção –, apresenta uma leitura crítica sobre a família real. Às vezes, coloca em discussão a sua própria existência e a pertinência de manter uma estrutura tão onerosa. Esse pano de fundo, porém, só ganha sentido e seduz graças às atuações irretocáveis de todo o elenco, especialmente as atrizes que viveram a protagonista em duas fases de seu reinado. Claire Foy, a jovem monarca, e Olivia Colman, que a interpreta em idade mais madura, valem a maratona da série.
Foy tem um rosto angelical, mas uma segurança de veterana. Atriz conhecida por seu talento no meio teatral londrino, ela teve a oportunidade de mostrar seu trabalho para um público de massa. Antes, seu currículo era formado apenas por séries de menor orçamento e menos ambiciosas. The Crown foi um salto nesse sentido, ainda mais se levarmos em conta que ela fica com a responsabilidade de ser a protagonista, uma mulher que exerce grande carisma e, em momentos de crises, é muito cobrada pela posição que tem. Unir delicadeza e força em uma mulher que se torna rainha após uma série de acasos é seu maior triunfo. Uma mulher que não pode ter grandes arroubos não pode ser portar com autenticidade, o que o olhar fala é o mais importante.
Esse olhar expressivo foi, digamos, herdado pela atriz que a sucede no papel, a excelente Olivia Colman, com mais bagagem que Foy, mas que teve a responsabilidade de substituir alguém que, nas duas primeiras temporadas da série, havia tido uma performance invejável. Isso não parece ter intimidado a atriz, que tem construído, nos últimos anos, uma carreira sólida tanto no cinema, quanto na TV. Ela incorporou Elizabeth II logo após ter interpretado outra rainha inglesa, a monarca Anne, no estupendo A Favorita. Por aí podemos ter uma medida do talento de Colman, uma vez que uma monarca é diametralmente oposta à outra. Essa diferença radical entre uma bem comportada e até reprimida Elizabeth e uma deprimida e temperamental Anne, que manipulava suas amantes, é brutal, mas Colman é convincente na pele de ambas.
Por A Favorita, Colman simplesmente ganhou o Oscar de Melhor Atriz em 2019, desbancando adversárias que pareciam ter mais chances de levar o prêmio, como Glenn Close. Antes, havia faturado o Globo de Ouro por The Night Manager, uma série fraquinha, mas na qual ela conseguiu se destacar enormemente. Também ganhadora do Globo de Ouro em A Favorita, repetiu o feito com The Crown. Isso sem contar que já tinha na estante um prêmio Emmy por um papel cômico na elogiada série Fleabag, da Amazon Prime. A escalação de Colman para a terceira e quarta temporadas de The Crown foi um gol de placa do produtor e diretor da série, Peter Morgan. É um deslumbre vê-la em uma atuação tão inspirada e precisa.
O elenco feminino da série conta com outras participações igualmente acertadas, como as das atrizes Helena Bohan-Carter e Vanessa Kirby, que dividem o papel da Princesa Margareth, irmã mais nova da rainha Elizabeth, e que tinha um temperamento mais rebelde e libertário, respondendo por alguns dos escândalos mais notórios e divertidos da família real britânica nas últimas décadas. Os atores incumbidos de interpretar o Príncipe Philip – marido de Elizabeth –, Matt Smith e Tobias Menzies, também estão muito bem, assim como aqueles que vivem alguns dos primeiros-ministros ingleses que passaram pelo governo durante o reinado da rainha, com especial destaque para o Winston Churchill de John Lithgow e o Harold Wilson de Jason Watkins.
Direção de arte impecável e reconstrução primorosa de cenas históricas – que o diga o famoso jantar que marca o encontro entre a rainha Elizabeth e a então primeira-dama norte-americana Jacqueline Kennedy, no início dos anos 1960, o que gerou até o início de uma rivalidade entre elas – são alguns dos predicados de The Crown. Isso sem falar no texto, escrito com esmero, dosando tensão e ironia, em que não fica de fora o notório humor cortante dos britânicos, mesmo nas situações mais delicadas. Feridas que maculam a Casa de Windsor, à qual a atual linhagem da monarquia inglesa pertence, não são ocultadas, como o apoio ao regime nazista de Hitler que o antigo rei Eduardo VIII, que renunciou ao trono para se casar com uma plebeia, deu pouco antes da Segunda Guerra.
São episódios que nos levam a revisitar a história não só da Grã-Bretanha, mas de toda a Europa e até de outras partes do mundo. Essas particularidades também só funcionam porque o elenco transmite verdade, convence, sabe reproduzir exatamente trejeitos e posturas. Basta ver esses mesmos momentos nos registros reais sobre eles. As roupas são iguais, as joias são as mesmas, os olhares são reconhecíveis. The Crown é, assim, um deleite para quem gosta deste gênero de série, mas não só para esse público. Quem aprecia interpretações seguras e felizes também vai adorar acompanhar esses episódios. Claire Foy e Olivia Colman formam uma dupla rara, sendo completamente diferentes, mas parecendo ser a mesma pessoa para dar vida na ficção a uma personalidade maiúscula da vida real. Estão majestosas.